Há mulheres a esperar várias semanas
29 fevereiro 2024 às 00h20
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“Abortar é legal, o acesso existe, mas é tudo menos fácil”

Com mais de 30% dos hospitais do SNS a recusar, devido à objeção de consciência dos médicos, fazer interrupção de gravidez por vontade exclusiva da mulher, há mulheres a esperar várias semanas - em violação da lei - para aceder a este direito que, consagrado desde 2007, só podem exercer no prazo mais curto da Europa.

"O aborto é gratuito e legal, certo, e o acesso existe - mas é tudo menos fácil. Eu por exemplo tive a primeira consulta do processo marcada para 26 dias depois do meu pedido. 26 dias – mais de cinco vezes o prazo máximo de cinco dias previsto na lei. Pode estar despenalizado, mas a alguma altura do processo fazem-nos sentir que estamos a fazer uma coisa imoral, que somos culpadas.”

Quem fala é Patrícia, administrativa de 36 anos, e a experiência diz respeito ao Hospital de Vila Franca de Xira, em outubro de 2022. O primeiro contacto com o Serviço Nacional de Saúde (SNS) ocorreu a 20 de outubro; o hospital disse-lhe que só tinha consulta a 15 de novembro. Quase quatro semanas de espera até à primeira consulta, às quais se somaria ainda o “período de reflexão” obrigatório, de três dias, entre essa consulta e o procedimento, e quando a lei só permite interromper até às 10 semanas de gravidez - naquele que é o prazo mais curto na Europa.

Quando em fevereiro de 2023 falou com o DN, para a investigação que o jornal publicou sobre a violação da lei do aborto no SNS, Patrícia descreveu o processo como “uma corrida de obstáculos”. Agora, face às declarações do vice-presidente do CDS-PP, Paulo Núncio, candidato a deputado pela AD, que defendeu “limitar o acesso ao aborto logo que possível” e proclamou ter o governo PSD/CDS-PP, em 2015, sido “dos primeiros governos do mundo a tomar medidas no sentido de dificultar o acesso ao aborto”, a voz treme-lhe. “Assusta-me ver este direito posto em causa, faz-me confusão isto ser sequer discutível, é uma insegurança muito grande para as mulheres. Como é que se pode querer regredir tanto? Esperava que se melhorasse.”

O caso extremo de Patrícia está, como a investigação do DN e os relatórios oficiais subsequentes sobre acesso à interrupção de gravidez (IG) – da Entidade Reguladora da Saúde (ERS), da Inspeção Geral das Atividades em Saúde e da Direção Geral da Saúde(DGS)  – comprovam, longe de ser uma exceção. O facto de mais de 80% dos médicos da especialidade de ginecologia e obstetrícia do SNS se declararem objetores para a IG até às 10 semanas por exclusiva vontade da mulher (em fevereiro de 2023, havia, segundo a ERS, apenas 81 médicos obstetras e ginecologistas disponíveis para realizar interrupções de gravidez nos 31 hospitais que oferecem esse serviço em Portugal continental), e de mais de 30% dos hospitais não a efetuarem alegando essa mesma objeção, resulta em graves dificuldades de acesso que têm sido reconhecidas  em deliberações da ERS e em estudos científicos.

De acordo com os dados tornados públicos pela DGS no final de 2023, se em 2022 pelo menos 20% das mulheres que quiseram aceder à IG tiveram de esperar mais de cinco dias pela primeira consulta, para 5% o prazo legal de espera foi duplicado ou triplicado. Números que, comprova a investigação do DN, pecam por demasiado otimistas: quando em fevereiro de 2023 o jornal assumiu o papel de uma mulher pretendendo aceder a este cuidado de saúde, ligando para vários hospitais, constatou que não só é muito difícil conseguir chegar à fala com o serviço certo – a falta de informação parecia imperar nos próprios estabelecimentos, onde funcionários assumiam não saber responder ou davam respostas contraditórias, erradas ou até tortas (sucedeu com o Hospital da Guarda, onde foi dito “aqui não fazemos, porque é um hospital amigo dos bebés”) – como os prazos de marcação de consulta vão muito para além do que os relatórios apontam.

Por exemplo no Hospital de Santarém, onde não se fazem IG até às 10 semanas por, alega a administração, todo o corpo clínico ser objetor, a informação recebida foi de que só daí a 13 dias haveria consulta – que nem sequer contaria como “consulta prévia”, servindo apenas para datar a gravidez, sendo depois a mulher “passada” para a Clínica dos Arcos (clínica privada em Lisboa), onde, aí sim, teria lugar a primeira consulta. Foi essa exatamente a experiência de Madalena, 18 anos, residente em Santarém, em janeiro de 2023. Ao ligar para o hospital, marcaram-lhe a “datação” para 12 dias depois. A reclamação da mãe, Rita, que não se conformou,  invocando a lei, conseguiu encurtar o prazo para metade. Ainda assim, teve de ouvir da funcionária que a atendeu: “Não tenho médicos para as grávidas, vou ter para as IG? Se está com pressa, marque diretamente para clínica e pague”.

Rita perseverou e a filha conseguiria abortar, na Clínica dos Arcos, a expensas do SNS, mas apenas 19 dias depois do primeiro contacto com o hospital e já após as nove semanas de gravidez. Quando falou com o DN, no mês seguinte, a mãe ainda fervia: “Andámos a fazer campanha pelo direito à IG em 2007, há 16 anos, com as filhas bebés ao colo, também por elas. E agora são enxovalhadas desta maneira. Isto não pode acontecer.”

Um ano depois destas declarações, manifesta-se "chocada" com o que se ouviu de Paulo Núncio. “Dúvidas houvesse, a prática reiterada e sistemática de situações que impedem na prática o acesso das mulheres ao direito ao aborto foi algo perverso e premeditado. Núncio vangloriou-se disso sem pudor. Os direitos das mulheres estão sob ataque da direita reacionária e conservadora. Inadmissível no ano em que celebramos 50 anos de democracia.”

Enquanto nos últimos anos vários países europeus eliminam obstáculos no acesso à IG – França e Espanha acabaram com o “período de reflexão” obrigatório entre a primeira consulta e o procedimento e aumentaram o prazo gestacional permitido; a Bélgica prepara-se para o fazer; no Reino Unido, consagrou-se a IG medicamentosa por “telemedicina” (os medicamentos necessários são enviados pelo correio) – em Portugal a revelação das dificuldades no acesso e das grandes desigualdades existentes entre diferentes zonas do país (que violam a legislação europeia e um estudo noticiado pelo DN demonstra implicarem, nas zonas mais afastadas de serviços onde se realizam IG, uma menor taxa deste cuidado de saúde, podendo implicar que ali se recorre ao aborto clandestino) não levaram até agora a qualquer alteração à lei e aos regulamentos.

Na verdade, como se comprova, a lei e os regulamentos não estão sequer a ser cumpridos nos hospitais portugueses: além de os prazos serem violados, o registo, obrigatório, de objetores de consciência (e com o qual o PSD e o CDS-PP acabaram, em alteração à lei no último dia da legislatura 2011/15, medida anulada pela maioria de esquerda que resultou das eleições de outubro de 2015) não estava até 2023, segundo a ERS, a ser efetuado.

A anos-luz da consagração constitucional esta quarta-feira aprovada no Senado francês (fazendo, com 267 votos a favor e 50 contra, da França o primeiro país do mundo a inscrever o direito ao aborto na lei fundamental), Patrícia, a Patrícia que sentiu o processo de interrupção de gravidez em Portugal como uma culpabilizadora “corrida de obstáculos”,  vê ainda assim algum progresso. “Houve coisas que mudaram desde que falei com o DN e esta situação foi revelada. Agora o atendimento automático no Hospital de Vila Franca de Xira já tem a opção interrupção da gravidez. Já não se tem de, como sucedeu comigo, ligar para o geral e falar com não sei quantas pessoas até chegar ao sítio certo. E espero que já não levem 26 dias a marcar uma consulta. Que a minha história tenha servido para alguma coisa.”