Há cerca de seis meses, a primeira-ministra estónia, Kaja Kallas, estava debaixo de fogo devido à revelação de que o marido tinha uma participação numa empresa de logística que continuava a fazer negócios com a Rússia. A oposição exigia a sua demissão e questionava os laços com Moscovo e o presidente Vladimir Putin, apesar de ela ser uma das principais vozes de apoio à Ucrânia dentro da União Europeia e da NATO - aliança militar que já manifestou interesse em liderar. Agora, Kallas viu o seu nome ser colocado na lista dos “mais procurados” da Rússia.
O mandado de captura russo contra Kallas - e também contra o seu secretário de Estado, Taimar Peterkop, e dezenas de outros políticos lituanos, letões e polacos - foi emitido devido ao seu papel na demolição de monumentos aos soldados soviéticos mortos durante a II Guerra Mundial, herdados do tempo em que o país era parte da União Soviética. Segundo o porta-voz do Kremlin, Dmitry Peskov, Kallas é procurada pela “profanação da memória histórica”. Em 2022, o governo estónio resolveu remover estes monumentos, sendo este um crime punido na Rússia com até cinco anos de prisão.
“A jogada da Rússia não é surpreendente. É mais uma prova de que estou a fazer o correto - o forte apoio da União Europeia à Ucrânia é um sucesso e prejudica a Rússia”, escreveu Kallas na rede social X (antigo Twitter), em reação à notícia, lembrando que a avó e a mãe foram deportadas para a Sibéria após o KGB emitir um mandado de captura contra elas durante a II Guerra Mundial. “O Kremlin espera agora que esta medida ajude a silenciar-me a mim e a outros - mas não o fará. Pelo contrário. Continuarei a dar o meu forte apoio à Ucrânia. Continuarei a defender o aumento da defesa da Europa.”
Filha do antigo primeiro-ministro (janeiro de 2002 a abril de 2003) e comissário europeu durante mais de uma década Siim Kallas, Kaja Kallas tornou-se em janeiro de 2021 na primeira mulher chefe de governo na Estónia. Ex-eurodeputada e líder do Partido Reformista (liberal) desde 2018, chegou ao poder sem eleições após a queda do anterior primeiro-ministro, Jüri Ratas, no meio de um escândalo de tráfico de influências. Em março do ano passado, foi finalmente a votos, tendo ganho as eleições. Atualmente lidera uma coligação com os sociais-democratas de centro-esquerda e os liberais do Estonia 200.
Em agosto do ano passado, rebentou o escândalo referente à participação de quase 25% que o marido, Arvo Hallik, tinha numa empresa de logística que continuou a trabalhar na Rússia - já terá vendido tudo. A primeira-ministra de 46 anos recusou demitir-se e denunciou uma “caça às bruxas” da oposição, dizendo que a empresa tinha atuado só para ajudar um cliente estónio a deixar o mercado russo.
À frente do executivo, Kallas lidou com a pandemia de covid-19 e com a invasão da Ucrânia, tendo a Estónia sido um dos países que mais apoiaram a Ucrânia - a ajuda será de 1,2 mil milhões de euros até 2027. O apoio militar começou antes do início da guerra, tendo o governo da Estónia sido também dos primeiros a apoiar a candidatura da Ucrânia à União Europeia. Kallas tem defendido o aumento da ajuda militar a Kiev, assim como das sanções contra a Rússia.
A revelação de que Kallas está na lista dos “mais procurados” da Rússia - estará lá desde outubro, mas só ontem se soube - surgiu no mesmo dia em que os serviços de informação da Estónia avisaram que Moscovo se está a preparar para um confronto militar com o Ocidente na próxima década. Algo que pode ser travado, dizem, se a Europa apostar no rearmamento e em responder ao reforço dos contingentes russos junto à fronteira com os países da NATO. Putin já disse que não tem “qualquer interesse” em invadir “a Polónia, a Letónia ou qualquer outro local”.
Mesmo com essas declarações, os países do Báltico já gastam mais do que 2% do PIB em Defesa e os aliados da NATO reforçaram a presença na região. Kallas tem defendido que a guerra na Ucrânia vai continuar até a Rússia perceber que é impossível ganhar, exortando os aliados a continuarem a apoiar militar e financeiramente Kiev. Em novembro, a primeira-ministra limitou-se a dizer “sim”, quando foi questionada diretamente sobre se gostava de ser tida em conta como sucessora de Jens Stoltenberg à frente da NATO. Este deverá sair em outubro, após dez anos no cargo e vários adiamentos.
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