Relatório
17 abril 2024 às 06h01
Leitura: 8 min

Autonomia das mulheres sobre o próprio corpo está a diminuir

Apesar de alguns avanços nalgumas latitudes, o mundo dá passos atrás, a reboque do sexismo, do racismo e outras formas de discriminação. É o que revela o relatório da agência das Nações Unidas para a saúde sexual e reprodutiva, que acaba de ser divulgado.

Todos os dias há 800 mulheres que morrem ao dar à luz; um quarto das mulheres não pode dizer não a sexo com o seu parceiro e quase uma em cada 10 não pode tomar as suas próprias decisões sobre contraceção. Estas são as principais conclusões do relatório sobre a Situação da População Mundial em 2024, publicado hoje pelo UNFPA, a Agência das Nações Unidas para a Saúde Sexual e Reprodutiva. O documento revela que em 40% dos países com dados disponíveis a autonomia corporal das mulheres está a diminuir. O racismo, o sexismo e outras formas de discriminação têm vindo a ganhar terreno.

Mónica Ferro, a portuguesa que dirige o escritório do Fundo das Nações Unidas para a População em Londres, afirma ao DN que este relatório chega envolvo num duplo sentimento: “Por um lado queremos celebrar as imensas conquistas e sucessos desde há 30 anos (quando foi desenhado, no Cairo, este programa que colocou pela primeira vez a saúde sexual e os direitos reprodutivos das pessoas no coração do desenvolvimento global), por outro há preocupação e uma certa estupefação com a desigualdade, com a falta de progresso em muitas comunidades.”

De acordo com o relatório, “os grandes ganhos globais em matéria de saúde e direitos sexuais e reprodutivos nos últimos 30 anos estão manchados por uma dura verdade: milhões de mulheres e meninas não beneficiaram desse progresso por serem quem são ou por terem nascido onde nasceram”.

O documento, intitulado Vidas Entrelaçadas, Fios de Esperança: Acabar com as desigualdades em matéria de saúde e direitos sexuais e reprodutivos, revela que as mulheres e as meninas pobres, pertencentes a grupos minoritários étnicos, raciais e indígenas, ou que são apanhadas em contextos de conflito, têm maior probabilidade de morrer por não terem acesso a cuidados de saúde atempados.

“Não me surpreendem dados como os que apontam para que entre 2000 e 2022 a mortalidade materna tenha diminuído 34%, ou que os nascimentos nas meninas entre os 15 e os 19 anos tenham diminuído um terço, ou que o número de mulheres que usam formas modernas de contraceção tenha duplicado. Ou ainda que haja 160 países com leis contra a violência doméstica, ou o progresso enorme que se fez no aborto seguro”, sublinha Mónica Ferro. “Mas custa-me ver de uma forma tão nua e crua as comunidades que têm sido deixadas para trás. As desigualdades.”

O relatório que agora veio a público “é muito focado na ideia da equidade e da intersexualidade”, aponta aquela responsável, referindo-se aos dados que apontam para comunidades onde a falta de acesso ao poder, identidade étnica, religiosa e de género “têm ficado tão afastadas dos projetos que a comunidade internacional tem feito, e como ali o progresso é tão pouco”. 

“Isto significa que nós não temos conseguido desmontar as barreiras sistémicas que nos impedem de chegar a estas pessoas, que ficaram ainda mais para trás do que estavam”, afirma Mónica Ferro.

Também a diretora executiva do UNFPA, Natalia Kanem, partilha deste sentimento. Numa nota enviada à imprensa, lembra que “no espaço de uma geração, reduzimos a taxa de gravidez indesejada em quase um quinto, diminuímos a taxa de mortalidade materna em um terço e aprovámos leis contra a violência doméstica em mais de 160 países”. “O nosso trabalho está incompleto, mas com investimento sustentado e solidariedade global não é impossível”, considera.

Desigualdade de género

Os dados do relatório apontam para uma realidade preocupante: o acesso a contracetivos, serviços de parto seguro, cuidados de maternidade respeitosos e outros serviços essenciais de saúde sexual e reprodutiva permanece inacessível para demasiadas mulheres e meninas. “Em Madagáscar, as mulheres mais ricas têm cinco vezes mais probabilidade do que as mais pobres de ter assistência qualificada no parto. E na Albânia, mais de 90% das mulheres de etnia cigana dos grupos socioeconómicos mais marginalizados tiveram sérios problemas de acesso aos cuidados de saúde, em comparação com apenas 5% das mulheres de etnia albanesa dos grupos socioeconómicos mais privilegiados.”

O documento deixa claro que as melhorias no acesso aos cuidados de saúde “beneficiaram, sobretudo, as mulheres mais ricas e as que pertencem a grupos étnicos que já tinham um melhor acesso aos cuidados de saúde. As mulheres e as meninas portadoras de deficiência, os migrantes e os refugiados, as minorias étnicas, as pessoas LGBTQIA+, as pessoas que vivem com o VIH e as castas desfavorecidas enfrentam todos maiores riscos para a saúde sexual e reprodutiva e também um acesso desigual aos cuidados de saúde sexual e reprodutiva”.

De resto, essa vulnerabilidade é ainda agravada pela forma como o mundo se apresenta, hoje, nos seus diversos prismas, como admite Mónica Ferro. “São forças poderosas, como as alterações climáticas, as crises humanitárias e a migração em massa, que têm tido um impacto desproporcionado nas mulheres que estão à margem da sociedade. É um efeito combinado das várias crises que estamos a sofrer”.

O relatório sublinha a importância de adaptar os programas às necessidades das comunidades – em vez de abordagens de grande escala e de tamanho único – e de capacitar as mulheres e as meninas para que criem e implementem soluções inovadoras.

Em suma, calcula também que “se gastássemos mais 79 mil milhões de dólares em países de baixo e médio rendimento até 2030, evitaríamos 400 milhões de gravidezes não-planeadas, salvaríamos 1 milhão de vidas e geraríamos 660 mil milhões de dólares em benefícios económicos”.

O atraso em números

130 vezes. Uma mulher africana que tenha complicações na gravidez e no parto tem cerca de 130 vezes mais probabilidades de morrer devido a essas complicações do que uma mulher da Europa e da América do Norte.

500 por dia. Estima-se que mais de metade de todas as mortes maternas evitáveis ocorram em países com crises humanitárias e conflitos – isto é, quase 500 mortes por dia.

Ascendência. Em todo o continente americano, as mulheres de ascendência africana têm mais probabilidades de morrer durante o parto do que as mulheres brancas. Nos Estados Unidos, a taxa é três vezes mais elevada do que a média nacional.

Indígenas. As mulheres de grupos étnicos indígenas têm maior probabilidade de morrer de causas relacionadas com a gravidez e o parto.

Deficiência. As mulheres portadoras de deficiência têm até 10 vezes mais probabilidades de sofrer violência com base no género do que as mulheres sem deficiência.

Orientação sexual. As pessoas com diferentes orientações sexuais e expressões de género enfrentam uma violência crescente e profundas barreiras aos cuidados de saúde.