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Sociedade
09 novembro 2024 às 00h53
Leitura: 14 min

“Há médicos e cientistas por aí que estão a espalhar desinformação sobre os alimentos”

Marketing, redes sociais, estudos em catadupa que se contradizem, jargão impenetrável, o tema alimentação vive um presente agitado. Comer tornou-se motivo de angústia e ansiedade. O químico italiano Dario Bressanini lançou um livro de autodefesa contra a desinformação no campo científico. Mote para esta conversa.

"Isto faz bem ou faz mal?” é a pergunta que tantas vezes baila na complexa teia em que se tornou a alimentação quotidiana. Fumados “carcinogénicos”, óleo de palma, sal rosa dos Himalaias, água alcalina, comprimidos de clorofila, entre outros, engrossam o léxico alimentar. A máquina do marketing, as vozes que ecoam nas redes sociais e a multiplicação de estudos de proveniência incerta exponenciam este labirinto em torno da comida. “Quantos mais alimentos temos ao nosso dispor, mais eles nos causam ansiedade e desconfiança”, sublinha o químico italiano Dario Bressanini. O docente no Departamento de Ciência e Alta Tecnologia da Universidade de Insubria oferece aos escaparates o livro Posso Comer ou Faz-me Mal?  Na obra, o autor desconstrói muitos dos medos associados à comida e serve-a fundada em ciência. 

Hoje, a sociedade ocidental vê-se perante a abundância de alimentos. Face a tal banquete “ficamos ansiosos e assustados”, como escreve no seu livro. Por que andamos ansiosos e quem nos deixa assustados?
Existem muitas razões. Somos bombardeados com mensagens contraditórias sobre os alimentos, com algumas fontes a elogiarem certos alimentos, enquanto outras os demonizam, muitas vezes ambas alegando suporte científico. Isto cria confusão e torna difícil determinar o que é verdadeiramente saudável. O marketing  utiliza frequentemente o jargão científico para promover produtos com benefícios duvidosos para a saúde, aproveitando o nosso desejo por alimentos que “não nos façam mal” ou que “nos façam bem”. Isto pode gerar ansiedade e despesas desnecessárias em produtos que podem não cumprir o que prometem. Além disso, os meios de comunicação social enfatizam com frequência as descobertas científicas preliminares, concentrando-se em estudos individuais que podem não ser representativos do conjunto mais vasto de investigação. Isto pode levar a conceitos errados sobre os reais riscos ou benefícios para a saúde de certos alimentos.

O que explica que estejamos tão abertos a aceitar as teorias e as mensagens mais absurdas relacionadas com a alimentação e os alimentos? 
Confrontadas com um mundo complexo e com ansiedades relacionadas com a saúde, as pessoas procuram soluções simples e uma sensação de controlo. As teorias absurdas oferecem isso, ao apresentar regras fáceis de seguir e demonizar certos alimentos, dando a ilusão de controlo sobre a saúde. A realidade tem, muitas vezes, mais cambiantes do que uma simples resposta sim ou não. Um fator importante é também a desconfiança prevalecente na ciência e autoridade convencionais, particularmente no domínio da alimentação e da saúde. Isto torna as pessoas mais suscetíveis a narrativas alternativas.

Por que desconfiam as pessoas do valor da ciência?
Esta desconfiança pode resultar de uma sensação de opressão por informações contraditórias ou de um sentimento de traição quando os conselhos científicos mudam. As estratégias de marketing capitalizam estas ansiedades, utilizando uma linguagem que soa científica para promover produtos com benefícios duvidosos para a saúde. Isto pode levar à aceitação de teorias absurdas, especialmente quando apresentadas por figuras aparentemente fidedignas, como médicos ou nutricionistas.

Por que escreve que o seu livro vai irritar muita gente? Quem vai irritar?
O livro tem como objetivo desmascarar mitos alimentares comuns e expor práticas de marketing  questionáveis na indústria alimentar. A obra critica os médicos e nutricionistas que endossam ou promovem produtos e práticas sem evidência científica. Os profissionais de saúde cujo rendimento ou reputação dependem destas práticas podem sentir-se ameaçados pela mensagem do livro e vê-lo como um ataque à sua experiência. Por exemplo, faço questão de mencionar os profissionais médicos que defendem o uso de água alcalina e outras terapias sem fundamento. Além disso, o escrutínio do livro sobre as práticas de marketing  e a sua ênfase nas escolhas alimentares baseadas em evidências podem irritar as empresas cujos produtos ou estratégias de marketing  são questionados. As indústrias que lucram com produtos comercializados com alegações de saúde exageradas podem ver o livro como uma ameaça aos seus interesses comerciais. A título de exemplo, refiro empresas que vendem produtos como comprimidos de clorofila, ionizadores de água alcalina e sal rosa dos Himalaias, apesar de não possuírem provas científicas para as suas alegações.

Há pouco referiu o recurso ao jargão científico como forma de veicular falsas mensagens no campo da alimentação. Pode dar-nos alguns exemplos?
Sim. Os meios de comunicação social e os profissionais de marketing  escolhem frequentemente estudos individuais, ou seja, escolhem apenas os estudos publicados que se enquadram nas suas afirmações, ignorando todos os outros estudos. Ou tentam apoiar as suas afirmações em estudos com metodologia fraca ou amostras pequenas, ou com estudos in vitro  que não são relevantes para os seres humanos. Ou interpretam mal as correlações. Como exemplo paradoxal, cito um estudo científico que liga o consumo de chocolate aos vencedores do Prémio Nobel num país específico. O estudo recebeu atenção dos media com manchetes que sugerem que comer chocolate aumenta a inteligência, apesar da falta de qualquer ligação causal.

Escreve no seu livro que “não  se deve confiar nos médicos e nos cientistas”. Estão  a espalhar desinformação?
Claro que há médicos e cientistas por aí que estão a espalhar desinformação sobre os alimentos. Mas, deixe-me ser claro: quando escrevo que “não se deve confiar em médicos e cientistas quando falam em público”, não estou a criticar estas profissões no seu todo. O que quero dizer é que devemos sempre examinar minuciosamente a informação apresentada e as provas, em vez de aceitar cegamente declarações baseadas nas credenciais do orador. No livro cito vários Prémios Nobel que, após receberem o galardão, espalharam informações duvidosas ou falsas. Ninguém está isento de comprovar uma declaração, quando solicitada, apenas por ser médico ou cientista.

Em quem devemos confiar quando o assunto é alimentação e saúde?
Embora seja tentador simplesmente aceitar informações de indivíduos que pareçam conhecedores ou fiáveis, é importante avaliar criticamente as informações, uma vez que mesmo aqueles com credenciais impressionantes podem promover afirmações infundadas. Devemos sempre perguntar se a informação que recebemos é a opinião de um único especialista ou se ele ou ela está a relatar o consenso atual na área. Devemos sempre procurar informação que reflita o consenso científico atual e, por vezes, estar prontos a aceitar “ainda não sabemos” como resposta. Organizações de saúde conceituadas, como a Organização Mundial de Saúde (OMS), fornecem orientações baseadas em análises abrangentes de estudos científicos. Eles próprios não fazem estudos. Em vez disso, recolhem e organizam todos os artigos científicos publicados sobre um assunto.

Diverte-nos ler o capítulo que dedica às correlações. Por exemplo, o número de afogamentos em piscinas em anos com filmes do Nicholas Cage. De que forma estas correlações absurdas estão a ser usadas na alimentação. Como podem ser prejudiciais?
Embora as correlações possam ser intrigantes e encontrá-las seja útil como ponto de partida na investigação científica sobre nutrição, não significam automaticamente que uma coisa cause outra. Manchetes como “Hortelã faz perder peso” ou “O chá verde protege contra o envelhecimento” baseiam-se frequentemente em estudos que mostram apenas uma ligação entre um alimento e um resultado de saúde. Só porque duas coisas acontecem juntas, não significa que uma tenha causado a outra, como no exemplo da correlação entre comer chocolate e ganhar Prémios Nobel. Este é um exemplo engraçado e somos automaticamente céticos, pois é muito inverosímil. Mas quando lemos que, por exemplo, beber água com limão de manhã diminui a probabilidade de contrair uma doença específica, não pensamos imediatamente que esta possa ser uma correlação espúria. Na verdade, beber água com limão de manhã não traz qualquer efeito especial.

Inúmeras provas sobre os efeitos bons e nocivos da alimentação apoiam-se em estudos. Como escreve, “publica-se muito lixo”. Como se explica que se multipliquem em publicações conceituadas maus estudos? 
A pressão para publicar na academia e na ciência pode provocar um foco na quantidade em detrimento da qualidade. Os investigadores enfrentam pressão para publicar os seus trabalhos em revistas conceituadas para garantir financiamento e progredir nas suas carreiras. Isto pode levar à publicação de investigação de baixa qualidade. Além disso, as revistas científicas preferem publicar descobertas sexy, que chamem a atenção do público. Estas conclusões são muitas vezes preliminares ou baseadas em provas fracas e carecem de rigor estatístico.

Como se explica que o mesmo alimento, por exemplo o café, seja cancerígeno num estudo e faça bem à saúde num outro estudo?
Só porque um estudo mostra uma ligação entre um alimento e um resultado de saúde, não significa que um cause o outro. Os estudos nem sempre consideram tudo o que pode afetar os resultados. Por exemplo, um estudo sobre o café e as doenças cardíacas pode não ter em conta a quantidade de exercício que as pessoas praticam ou se fumam, o que poderá ser um fator mais importante. Além disso, muitas vezes, estes estudos mostram apenas uma flutuação estatística aleatória do resultado, pelo que os resultados são simplesmente aleatórios. Por vezes “ligeiramente positivo” e outras vezes “ligeiramente negativo”. O resultado líquido é, muitas vezes, que um determinado alimento não faz nada, nem é bom, nem mau.

Dedica especial atenção ao sal rosa dos Himalaias. Escreve que é “um exemplo clássico de embuste”. Porquê?
O sal rosa dos Himalaias é, em grande parte, uma jogada de marketing. Apesar das alegações de ser originário dos Himalaias, o sal vem, na verdade, da Cordilheira do Sal, no Paquistão. A cor rosa é atribuída a impurezas de óxido de ferro, essencialmente ferrugem, e não a quaisquer propriedades nutricionais especiais. As alegações de conter 84 minerais essenciais provêm de uma fonte única e infundada e carecem de suporte científico. Para além do cloreto de sódio, quaisquer minerais adicionais do sal rosa estão presentes em quantidades tão ínfimas que não oferecem qualquer benefício nutricional real. Embora muito mais caro do que o sal branco refinado comum, o sal rosa não oferece vantagens significativas para a saúde.

Por que continuamos a não confiar na água da torneira quando, nas sociedades desenvolvidas, esta apresenta grande qualidade?
Mesmo quando a água da torneira é de alta qualidade, muitas pessoas continuam sem confiar nela. Esta desconfiança decorre de algumas coisas. Por vezes, a água da torneira tem um mau sabor ou cheiro por causa do cloro utilizado para a tornar segura. As empresas de água engarrafada também fazem com que as pessoas se preocupem com a água da torneira, dizendo que o seu produto é mais puro. Além disso, as pessoas parecem ter medo dos sais de cálcio e magnésio dissolvidos na água da torneira, nomeadamente o calcário. É verdade que a água dura pode prejudicar a nossa máquina de lavar roupa, mas não somos uma máquina de lavar roupa e os sais de cálcio e magnésio são absorvidos pelo nosso corpo porque são micronutrientes preciosos.