A carta chegou a Maria – foi esse o nome que o DN lhe deu – a 9 de setembro. Assinada por Carlos Gil, vogal executivo do Conselho de Administração da Unidade Local de Saúde do Médio Tejo/Hospital de Tomar, informa-a de que foi decidido pela administração, a 29 de agosto de 2024, “proceder à abertura de um processo de inquérito, para cabal esclarecimento da situação relatada”. Em causa a recusa, pela diretora do serviço de ginecologia e obstetrícia daquela unidade de saúde, da laqueação de trompas que Maria tinha requerido formalmente na consulta de Planeamento Familiar.
Malgrado o anúncio da abertura de inquérito, Maria, que afirma querer levar este caso “até às últimas consequências”, tendo efetuado já uma queixa no livro de reclamações do hospital e outra à Entidade Reguladora da Saúde, não conseguiu até agora que o hospital lhe comunique formalmente o motivo da recusa de acesso ao procedimento, que lhe foi transmitida por telefone a 21 de agosto.
É sobretudo pelas outras mulheres, declara Maria ao DN, que quer levar este processo até ao fim. “Gostaria que mais ninguém tivesse de ouvir o que ouvi daquela médica. Ela podia ter dito por exemplo que a lista de espera era muito longa, que tentasse noutro sítio. Ou que é contra a laqueação, que é objetora, e reencaminhar-me para outro médico. Mas dizer que não e pronto? Não é admissível.”
Facto é que no SNS situações como a de Maria estão longe de ser excecionais, como o DN descobriu, na sequência da notícia sobre o seu caso, publicada a 27 de agosto. O jornal encontrou várias outras mulheres que tentaram efetuar uma laqueação de trompas no SNS e, como Maria, se depararam, apesar de preencherem as condições requeridas pela lei (serem maiores de 25), com recusas liminares e reações derrisórias.
O mesmo se passa noutros países onde a esterilização voluntária – laqueação de trompas e vasectomia – é um direito legal. Títulos de notícias francesas recentes (desde 2001 que em França se pode aceder à esterilização a partir dos 21) sobre a dificuldade de aceder a esse cuidado de saúde falam de “uma corrida de obstáculos”; na Bélgica usa-se a palavra “tabu”.
O assunto já chegou às revistas da especialidade: em 2017, o Journal of Obstetrics and Gynaecology publicou um artigo no qual se conclui que várias mulheres com menos de 30 anos tinham, entre setembro de 2013 e março de 2017, encontrado dificuldades em aceder ao procedimento no Canadá –malgrado o consenso da Sociedade de Obstetras e Ginecologistas do país determinar que a contracepção definitiva deve estar disponível às mulheres (adultas) independentemente da idade ou do número de filhos. A conclusão do artigo é de que recusar pedidos de esterilização definitiva por parte de pessoas convenientemente informadas é uma forma de objeção de consciência e não uma decisão clínica.
Noutros locais, é a própria lei que está a ser posta em causa. No Brasil, entrou este ano no Supremo Tribunal Federal uma ação do Partido Socialista Brasileiro (partido de centro-esquerda ao qual pertence o vice-presidente do Governo Lula, Geraldo Alckmin) a questionar a constitucionalidade das regras legais para o acesso à laqueação e à vasectomia. Alteradas em 2022, permitem o acesso a maiores de 21 ou a menores de 21 que já tenham dois filhos (e impondo um prazo de 60 dias entre a manifestação da vontade e o procedimento) são consideradas pelo PSB “demasiado restritivas” e “uma indevida limitação dos direitos reprodutivos”; o sindicato dos Médicos do Paraná fala de “um absurdo dever de procriação” a propósito da exigência de dois filhos a quem seja menor de 21.
Por cá, o DN questionou a 3 de setembro o Colégio da Especialidade de Ginecologia e Obstetrícia da Ordem dos Médicos sobre a matéria, perguntando, nomeadamente, em que circunstâncias, para além da invocação de objeção de consciência (prevista na lei e que implica remissão para outro profissional), considera aquele órgão que um médico pode recusar a laqueação de trompas perante pedido, devidamente formalizado, de mulher maior de 25, e se não é obrigatório, do ponto de vista deontológico, que uma recusa seja formalmente fundamentada. Até à publicação deste artigo, e apesar da insistência do jornal, não houve resposta.
Mas já lá vamos; agora voltemos ao caso de Maria – que tenciona também apresentar queixa à Ordem dos Médicos.