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Sociedade
22 setembro 2024 às 00h01
Leitura: 20 min

Recusa liminar de laqueação de trompas é comum no SNS. Hospital de Tomar abre inquérito

A lei garante direito à esterilização voluntária a maiores de 25, mas há médicos no SNS que, sem invocar objeção de consciência, recusam liminarmente acesso ao procedimento. No caso do Hospital de Tomar, revelado em agosto pelo DN, foi aberto inquérito. Questionada, a Ordem dos Médicos não responde.

A carta chegou a Maria – foi esse o nome que o DN lhe deu – a 9 de setembro. Assinada por Carlos Gil, vogal executivo do Conselho de Administração da Unidade Local de Saúde do Médio Tejo/Hospital de Tomar, informa-a de que foi decidido pela administração, a 29 de agosto de 2024, “proceder à abertura de um processo de inquérito, para cabal esclarecimento da situação relatada”. Em causa a recusa, pela diretora do serviço de ginecologia e obstetrícia daquela unidade de saúde, da laqueação de trompas que Maria tinha requerido formalmente na consulta de Planeamento Familiar. 

Malgrado o anúncio da abertura de inquérito, Maria, que afirma querer levar este caso “até às últimas consequências”, tendo efetuado já uma queixa no livro de reclamações do hospital e outra à Entidade Reguladora da Saúde, não conseguiu até agora que o hospital lhe comunique formalmente o motivo da recusa de acesso ao procedimento, que lhe foi transmitida por telefone a 21 de agosto

É sobretudo pelas outras mulheres, declara Maria ao DN, que quer levar este processo até ao fim. “Gostaria que mais ninguém tivesse de ouvir o que ouvi daquela médica. Ela podia ter dito por exemplo que a lista de espera era muito longa, que tentasse noutro sítio. Ou que é contra a laqueação, que é objetora, e reencaminhar-me para outro médico. Mas dizer que não e pronto? Não é admissível.”

Facto é que no SNS situações como a de Maria estão longe de ser excecionais, como o DN descobriu, na sequência da notícia sobre o seu caso, publicada a 27 de agosto. O jornal encontrou várias outras mulheres que tentaram efetuar uma laqueação de trompas no SNS e, como Maria, se depararam, apesar de preencherem as condições requeridas pela lei (serem maiores de 25), com recusas liminares e reações derrisórias. 

O mesmo se passa noutros países onde a esterilização voluntária – laqueação de trompas e vasectomia – é um direito legal. Títulos de notícias francesas recentes (desde 2001 que em França se pode aceder à esterilização a partir dos 21) sobre a dificuldade de aceder a esse cuidado de saúde falam de “uma corrida de obstáculos”; na Bélgica usa-se a palavra “tabu”.  

O assunto já chegou às revistas da especialidade: em 2017, o Journal of Obstetrics and Gynaecology publicou um artigo no qual se conclui que várias mulheres com menos de 30 anos tinham, entre setembro de 2013 e março de 2017, encontrado dificuldades em aceder ao procedimento no Canadá –malgrado o consenso da Sociedade de Obstetras e Ginecologistas do país determinar que a contracepção definitiva deve estar disponível às mulheres (adultas) independentemente da idade ou do número de filhos. A conclusão do artigo é de que recusar pedidos de esterilização definitiva por parte de pessoas convenientemente informadas é uma forma de objeção de consciência e não uma decisão clínica

Noutros locais, é a própria lei que está a ser posta em causa. No Brasil, entrou este ano no Supremo Tribunal Federal uma ação do Partido Socialista Brasileiro (partido de centro-esquerda ao qual pertence o vice-presidente do Governo Lula, Geraldo Alckmin) a questionar a constitucionalidade das regras legais para o acesso à laqueação e à vasectomia. Alteradas em 2022, permitem o acesso a maiores de 21 ou a menores de 21 que já tenham dois filhos (e impondo um prazo de 60 dias entre a manifestação da vontade e o procedimento) são consideradas pelo PSB “demasiado restritivas” e “uma indevida limitação dos direitos reprodutivos”; o sindicato dos Médicos do Paraná fala de “um absurdo dever de procriação” a propósito da exigência de dois filhos a quem seja menor de 21.

Por cá, o DN questionou a 3 de setembro o Colégio da Especialidade de Ginecologia e Obstetrícia da Ordem dos Médicos sobre a matéria, perguntando, nomeadamente, em que circunstâncias, para além da invocação de objeção de consciência (prevista na lei e que implica remissão para outro profissional), considera aquele órgão que um médico pode recusar a laqueação de trompas perante pedido, devidamente formalizado, de mulher maior de 25, e se não é obrigatório, do ponto de vista deontológico, que uma recusa seja formalmente fundamentada. Até à publicação deste artigo, e apesar da insistência do jornal, não houve resposta.

Mas já lá vamos; agora voltemos ao caso de Maria – que tenciona também apresentar queixa à Ordem dos Médicos.

“Não vai laquear as trompas aqui nem em nenhum hospital público”

Após ter comunicado ao seu médico de família a vontade de laquear as trompas, de ter, por ele, sido encaminhada para a consulta de planeamento familiar do Hospital de Tomar, e de nesta, depois de avaliada do ponto de vista clínico, ter efetuado formalmente o pedido de laqueação, Maria recebeu (a 21 de agosto) um telefonema da diretora do serviço de obstetrícia daquela unidade de saúde. Neste, a médica, alegando como motivo o facto de Maria ter 32 anos, um filho com menos de um ano (o bebé tinha 10 meses) e não padecer de uma condição grave, ter-lhe-á dito que não poderia fazer ali a laqueação – nem em nenhum outra unidade do SNS: “Não vai laquear as trompas aqui nem em nenhum hospital público”. Confrontada pelo jornal com este relato, a médica não negou os termos da conversa

Sobre a recusa em si, o hospital garantiu ao dn que não se deveu a objeção de consciência – que a lei, de 1984, reconhece aos médicos no caso de um pedido de esterilização –, mas sim a “critérios única e exclusivamente clínicos”. Os quais explicou assim: “A realização do procedimento cirúrgico (…) num momento de pós-parto/puerpério da utente, envolveria riscos para a sua saúde que são desproporcionais”. O hospital assegura porém que “a utente foi informada de que poderia solicitar referenciação para outra unidade”: “Foi explicado à utente, pela Diretora do Serviço de Ginecologia-Obstetrícia, como  deveria proceder para ser referenciada para outra unidade do SNS”.

Ora Maria, que nega que lhe tenha sido mencionada a possibilidade de referenciação para outra unidade, tinha à data da recusa um filho de 10 meses – logo,  não estava no puerpério (período correspondente às seis semanas após o parto, como precisou ao DN o presidente do Colégio da Especialidade de Obstetrícia e Ginecologia da Ordem dos Médicos, José Furtado Preso). Por outro lado, a existirem de facto motivos “clínicos” para a recusa, seriam, em princípio, válidos em todo o SNS – a referenciação para outra unidade dificilmente faria sentido.

Mas a estranheza da situação não se esgota no que foi já relatado pelo DN: um dia após a publicação da notícia neste jornal, Maria recebeu uma carta do hospital, datada de 22 de agosto, pela qual ficou a saber que tinha estado na lista de espera para a cirurgia ginecológica. E que no dia 21 (o do telefonema da diretora do serviço), “por decisão clínica”, a sua inscrição nessa lista fora “cancelada”. A carta informava-a de que tinha 10 dias para exprimir “alguma dúvida”– ou seja, contestar – mas não esclarecia qual o teor da dita “decisão clínica”.

Aquando da receção da missiva, Maria exprimiu ao DN a sua perplexidade: “Na carta dizem, sobre eu ter estado na lista de espera, ‘como é do seu conhecimento’ – ora eu nunca soube disso. Colocaram-me numa lista de espera, não me disseram nada e depois tiraram-me? Isto está cada vez mais confuso”. Logo no dia a seguir (29 de agosto) requereu, via email, que a esclarecessem sobre o teor e autoria da decisão clínica que a tinha colocado na lista de espera, assim como o inverso.

“Informam que cumpri os requisitos para ser aceite e colocada numa fila de espera para cirurgia, mas depois fui removida por uma ‘decisão clínica’ que não é informada ou descrita na carta oficial do hospital”, lê-se no referido email. “Peço assim formalmente que me enviem uma justificação acerca da decisão, e também uma cópia do meu processo com todos os documentos anexos.”

“Não conheço uma mulher que tenha pedido para laquear as trompas e tenha conseguido”

Como já referido, até à publicação deste texto Maria não recebeu qualquer esclarecimento – à exceção do que o hospital comunicou ao DN – sobre o teor da alegada “decisão clínica”. E também ainda não recebeu o seu processo clínico: foi-lhe comunicado via email a 11/9 que o pedido de acesso foi “validado”, mas o tempo de resposta poderá variar entre 10 e 60 dias.

Enquanto aguarda o esclarecimento do hospital de Tomar, e agora também o resultado do inquérito que está a decorrer, Maria, que não desistiu da laqueação, foi encaminhada pelo seu médico de família – “Ele ficou muito perplexo e indignado com o que se passou”– para outro hospital. “Agora estou à espera de nova consulta de Planeamento Familiar. Mas sei que nem todas as mulheres têm um médico de família como o meu, que as apoie. Muitas ficam pelo caminho – ou nem sabem o que a lei garante, ou não têm alento para ir contra o que os médicos lhes dizem. Aliás não conheço nenhuma mulher que tenha pedido para laquear as trompas e tenha conseguido.”

Não será Joana, 31 anos, residente no Alentejo, a contradizer Maria. Em janeiro de 2023, esta alentejana engravidou e decidiu fazer uma interrupção de gravidez (IG). “Já tinha dois filhos, um com cinco e outro de sete meses, não queria, não tinha capacidades psicológicas que me permitissem ter outro. Perguntei ao médico, na consulta de IG no hospital, se podia fazer uma laqueação. Disse que não: ‘Estou a ver que ainda tem 30 anos e apenas dois filhos. Ninguém lhe faz uma laqueação nessas circunstâncias”. 

Joana não discutiu: “Sou tímida e reservada e pensei que a lei era assim. Várias amigas também receberam informações semelhantes e aceitaram-nas como boas. Só soube que não é assim quando vi a referência à lei numa publicação da Associação Escolha [que denunciou o caso de Maria na sua conta de Instagram]. O que me deixou incrédula, agora que estou grávida do terceiro filho.” Depois do parto, garante, vai insistir na esterilização. “Disseram-me que a vasectomia [esterilização masculina] não é feita na minha zona, não sei porquê, então vou voltar a pedir a laqueação. Tenho muita pena de que em 2024 se continue a silenciar as decisões que deveriam ser individuais e de cada mulher. Não somos, supostamente, donas do nosso corpo?

A pergunta ecoa na página de Instagram da Escolha, onde, em comentário à partilha da denúncia de Maria e da notícia do DN sobre o caso, se sucedem testemunhos indignados. Daniela, 30 anos e duas filhas, conta que lhe disseram não “porque sou muito nova e me vou arrepender”. Ana, de 27, igual: “Tenho a certeza absoluta de que não quero ter filhos. A minha mãe apoia-me a 100% mas infelizmente conhece o país que temos: sempre me disse que nunca ia conseguir que me fizessem o procedimento. No mês seguinte a fazer 26 falei disso ao meu médico de família. Só faltou chamar-me criança”. A Catarina, 47 anos, a resposta é ao contrário: “Espero desde os 44 anos. Dizem que não fazem pela minha idade, mas ainda não estou na menopausa.”

“Disse que só eram feitas a mulheres com claras falhas de saúde e sociais”

Demasiado novas, demasiado velhas. Teresa, 40 anos e dois filhos, pediu a laqueação aos 30 pela primeira vez. “Foi no segundo parto, no hospital de Santarém. Negaram pela minha idade, dizendo ‘vocês todas querem fazer laqueação, depois arrependem-se’. Desisti. Na consulta pós-parto comentei com a obstetra que me acompanhou durante a gravidez e ela disse que deveriam ter feito, dado o meu histórico – tenho problemas de saúde e fiz duas cesarianas. Passados nove anos, voltei, numa consulta de hospital, a encontrar a mesma médica, que não se lembrava de mim. Voltei a falar de laqueação e ela voltou a perguntar porque não tinha feito aquando da cesariana. Insisti na laqueação e ela tentou demover-me de todas as maneiras. Quando sugeri uma vasectomia ao meu marido, achou ainda pior. Lá consegui ficar numa fila de espera para a cirurgia, mas ela avisou-me logo de que era ‘enorme’. São muito contraditórios: aconselham-me a não ter filhos; se peço a laqueação ficam reticentes. Mas desta vez não desisti.” 

As histórias são todas semelhantes, quer tenham ocorrido agora ou há 20 anos. Em 2004, Carla ouviu parecido, com um brinde darwinista: “Estava, aos 31 anos, grávida da minha terceira filha, e pedi ao médico que me assistia na maternidade Daniel de Matos, em Coimbra, que me fizesse a laqueação. Explicou-me que nunca o faria durante o parto, porque prezava sempre o parto normal (até aqui, tudo bem), mas que de qualquer modo, nem ele nem nenhum outro médico ma poderia fazer no SNS, porque era muito nova  e tinha boas condições de vida. As laqueações, afirmou, só eram feitas a mulheres com claras falhas de saúde e sociais.”

Também Carla desconhecia que, há muito, a lei – com a qual o Código Deontológico da Ordem dos Médicos esteve até 2009 em contradição, estatuindo, ilegalmente, que a esterilização só podia ocorrer em “situações que objetivamente a justifiquem, e precedendo sempre o consentimento expresso do esterilizado e do respetivo cônjuge, quando casado” – lhe garantia o direito à laqueação, sem outra condição que ser maior de 25. “Depois houve a descriminalização do aborto, em 2007, e pensei que a laqueação teria passado a estar disponível para todas as mulheres. Fico triste por descobrir que os médicos ainda a recusam. E não consigo perceber porquê – acham melhor andarmos anos a tomar pílulas contraceptivas, que têm tantas contra-indicações?”

Agora com 42 anos, congratula-se com a decisão. “Nunca me arrependi. Para quem está convencida de que não quer mais filhos é um descanso. E é uma operação simples, são dois furinhos na barriga [trata-se de uma intervenção por laparoscopia], fui para casa no mesmo dia. É mesmo surreal ter sido tão difícil conseguir algo tão básico.”

“É gente demais a meter o bedelho nos nossos corpos”

Há, claro, quem consiga aceder ao procedimento – por vezes usando “truques”. Como Gabriela. “Aos 33 anos, ao ter o meu segundo filho, a médica que ia fazer a cesariana perguntou-me se queria aproveitar para laquear as trompas. Disse que não porque nunca tinha pensado no assunto, mas três anos depois [em 2019] decidi fazer, até porque punha o DIU (dispositivo intra-uterino) e o corpo rejeitava, aquilo saía sem dar conta. Mas a médica de família disse que nem pensar, que podia vir a separar-me e casar com um homem que queria mais filhos.” Um argumento interessante: se o novo marido quisesse filhos, ela teria de os querer também. Mas Gabriela não desistiu: tendo um médico no privado, falou-lhe da sua decisão. “Percebi que os seguros de saúde não comparticipam a intervenção, a não ser que haja uma indicação clínica. O médico comentou: ‘As minhas colegas parece que só querem fazer laqueação a mulheres com 43 ou 45, quando já não precisam’. E como trabalha num hospital público disse-me para ir à urgência ter com ele, que me encaminharia para uma consulta de ginecologia para esterilização definitiva. E assim foi. Assinei um documento em como era a minha vontade e acho quem nem meio ano esperei. As listas de espera não devem ser assim tão grandes.” 

Num testemunho na página da Escolha, uma Carol corrobora: “Demorei anos até conseguir fazer a minha e conheço mulheres que estão a tentar há muitos anos. Dão-lhes sempre a desculpa de se mudar de ideias, de que somos jovens para tomar um decisão dessas, de que o marido tem de concordar. É gente demais a meter o bedelho nos nossos corpos.”

Este “meter de bedelho” não é, como já referido, exclusivo dos médicos portugueses. No diário francês Le Monde, em janeiro de 2024, uma reportagem sobre a esterilização voluntária antes dos 30 anos chegava à conclusão de que “para os jovens adultos sem filhos, e que não os querem ter, conseguir aceder a uma laqueação de trompas ou a uma vasectomia de objetivo contracetivo é ainda uma corrida de obstáculos”.

No mês seguinte, no site ActuBordeaux, Julie contava como só conseguira efetuar a laqueação aos 37, depois de anos a deparar-se com médicos que, ignorando a lei, impunham condições como “já termos filhos, ou termos mais de 40 anos ou até autorização do marido”. Houve inclusive, assevera, quem lhe tivesse exigido que passasse por “uma consulta de psicologia”. 

Atitudes que para o ginecologista francês Philippe Davis, ouvido em dezembro de 2022 pelo site ouestfrance.fr, são muito comuns (estima que 90% dos ginecologistas e urologistas franceses recusam a esterilização a pessoas abaixo dos 30), relevando de “uma visão paternalista médica: pensam que sabem melhor que as pessoas em causa o que é bom para elas”.