Exclusivo
Sociedade
23 setembro 2024 às 00h02
Leitura: 9 min

Nova lei aliviou médicos de família em 426 mil consultas para baixas

O presidente da Associação dos Médicos de Família faz balanço positivo dos seis meses da lei que entrou em vigor em março e permitiu aos serviços privados, sociais e de urgências passarem baixas. Mas, diz, ainda “há muita burocracia para retirar das funções dos médicos”, que neste tempo passaram 1,6 milhões de baixas.

O Decreto-Lei n.º 2/2024, de 5 de janeiro, que permite a emissão de Certificados de Incapacidade Temporária (CIT) - vulgo baixas médicas - aos serviços de saúde dos setores privado e social e aos serviços de urgências do Serviço Nacional de Saúde (SNS),  ainda assinado pelo anterior ministro, Manuel Pizarro, e com entrada em vigor a 1 de março, já conseguiu aliviar os médicos de família em mais de 426 mil consultas para esta finalidade. Mas mesmo assim, seis meses depois de a lei entrar em vigor, os dados disponibilizados ao DN pelos Serviços Partilhados do Ministério da Saúde (SPMS) mostram que até ao dia 11 de setembro os médicos de família realizaram mais de um milhão e meio de consultas que resultaram em baixas médicas, mais precisamente 1.555.834. 


Para o presidente da Associação Portuguesa de Medicina Geral e Familiar (APMGF), Nuno Jacinto, o balanço da nova lei é positivo, embora destaque que ainda “há coisas que devem ser revistas e mudadas nesta legislação”, nomeadamente no que respeita “à renovação das baixas, aos relatórios clínicos pedidos por ginásios e outras entidades e até na renovação do receituário”. 


Em relação às baixas, admite não haver dúvidas de que a nova lei veio aliviar “os cuidados primários” e repor o que diz ser “uma questão básica”, que é: “O médico que observa o doente e que determina a sua incapacidade é quem deve emitir a baixa, quem a deve assinar e assumir essa responsabilidade.” 


De acordo com o regime anterior, todas as baixas tinham de ser passadas pelo médico de família, mesmo que a incapacidade para o trabalho fosse observada numa consulta de um serviço de urgência, numa consulta externa de um hospital do SNS ou numa unidade de saúde privada ou social. E isto, para Nuno Jacinto, “era incompreensível”.

Aliás, ressalva, “a nova medida teve vantagens para os profissionais, que assim ficam com mais tempo disponível para consultas de doença aguda ou de doença crónica, mas também para os utentes, que escusam de sair de uma urgência ou de uma unidade privada e ter de ir para o centro de saúde à procura de uma vaga para pedir a baixa que outro médico lhe prescreveu”. 


Na verdade, e tendo em conta os dados do SPMS, de 1 de março a 11 de setembro foram passadas 426.456 baixas médicas fora dos centros de saúde, englobando aqui 292.336 passadas por diferentes entidades do setor público, através de médicos do Ministério da Defesa, da Justiça, dos hospitais do SNS e do ICAD (Instituto para os Comportamentos Aditivos e as Dependências), as 94.723 passadas pelos prestadores de saúde dos setores privados e social e mais 39.397 passadas pelos médicos das urgências do SNS. 


Mas se a este total juntarmos ainda os números das Autodeclarações de Doença (ADD), os atestados de três dias que são pedidos pelo próprio doente online, sendo ele a atestar não estar em condições para trabalhar, o que passou a ser possível em julho do ano passado (antes este tipo de atestado também tinha de ser passado no centro de saúde), pode dizer-se que neste último ano os médicos de família foram aliviados em mais de 700 mil consultas, já que os dados do Ministério da Saúde revelam que de 1 de janeiro a 16 de setembro foram emitidas 321.533 ADD. 


Renovações de baixa ainda enchem centros de saúde


Só que, e apesar do “balanço positivo”, Nuno Jacinto assinala que “há pontos nesta lei que deveriam ser resolvidos”. É o caso da renovação das baixas, que continuam a ter de ser passadas pelos médicos de família. Ou seja, “o período máximo de uma baixa é igual para todas as situações, 30 dias, mas imagine um doente que fez uma fratura de um pé ou de uma perna, um caso em que o colega do hospital sabe que a sua recuperação vai ser de três, quatro ou seis meses; nessas situações o colega deveria poder passar uma baixa por este período, mas não pode. Ao fim de um mês, o doente tem de ir ao centro de saúde para renovar a baixa”. 


Para o médico de família, “nas situações em que se justifica uma recuperação mais longa, a renovação deveria ser feita pelo mesmo colega”. Senão continuam “ a ser os médicos de família que ao fim de um mês têm de observar e avaliar novamente o doente para renovar a baixa a cada 30 dias”. E lembra até que já há situações em que o que defende acontece: “Isso é possível nas gravidezes de risco, em que se pode passar uma baixa até à data prevista do parto.” Por isto mesmo sustenta que ainda “há muitas coisas que têm de ser aprimoradas para facilitar a vida de todos, profissionais e utentes”.


A situação tem feito com que muitas das consultas registadas para a passagem de baixas, desde março a setembro deste ano, sejam precisamente só para renovações. No entanto reconhece: “Podemos dizer sempre que gostaríamos de ser libertados de mais atos administrativos para melhorar a vida de todos, mas a verdade é que com esta medida já fomos libertados de milhares de consultas.” 


Relatórios para ginásios e medicamentos são problema


O presidente da APMGF salienta outra vantagem que resultou da nova lei - “evita algum conflito entre médicos, ter de gerir diferenças de opinião caso houvesse visões diferentes sobre um quadro clínico” -, mas volta a sublinhar que ainda há trabalho a fazer para se retirarem atividades desnecessárias dos centros de saúde. E dá exemplos: “Há outros atos meramente administrativos que podem ser retirados dos centros de saúde, libertando ainda mais tempo dos médicos para os utentes, como relatórios clínicos que são pedidos por ginásios ou outras entidades”, argumentando: “Hoje, qualquer ginásio pede um relatório clínico a uma pessoa que se quer inscrever e a pessoa vai pedi-lo ao médico de família. Se quer terminar a inscrição antes do fim do período de fidelização, tem de pedir outro relatório, e andamos nisto, pelo que são muitas consultas para um ato administrativo. Esta questão tem de ser revista.” 


A renovação do receituário é outro ato que poderia ser agilizado. “Do nosso ponto de vista, não deveria passar pelo médico de família o número de caixas que se pode prescrever ao doente se a receita tem duração de seis meses ou de um ano. O que me interessa é que marco consulta para um utente daqui a seis meses para o observar novamente e que autorizo na receita que este utente tenha a medicação adequada durante este período. Agora se são cinco caixas, quatro ou sete, não interessa rigorosamente nada. O que quero é que o utente faça aquele medicamento. Era muito mais fácil para todos se evitássemos contagens automáticas”, argumenta, sublinhando que “seria um avanço se as farmácias pudessem aceder a mais informação e fazer diretamente a gestão de número de caixas quase automaticamente”. 


Numa altura em que no país há 1,7 milhões de utentes sem médico de família, Nuno Jacinto considera que estas questões têm de ser trabalhadas para libertar ainda mais o tempo dos médicos que ainda estão no SNS. “É preciso que fique efetivamente transparente o que as várias entidades, ginásios, patrões, etc., podem pedir às pessoas, para que todos possamos cumprir e resolver esta questão burocrática nos centros de saúde.”