Presidência
20 maio 2024 às 22h54
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Morte de Raisi pode trazer fase de instabilidade política, mas trajetória do Irão vai manter-se

Novo presidente iraniano vai ser escolhido numas eleições marcadas para 28 de junho. Analistas acreditam que o Conselho dos Guardiães só vai permitir candidatos que protejam a revolução neste tempo de revolta regional.

A morte do presidente do Irão, Ebrahim Raisi, confirmada ontem e ocorrida na sequência de um acidente de helicóptero no domingo pode levar a um período de instabilidade política, mas é improvável que mude a política externa do Irão ou o seu papel no Médio Oriente. O seu sucessor será escolhido numas eleições marcadas para 28 de junho. 

O clérigo ultraconservador era considerado um dos favoritos para suceder ao líder supremo Ali Khamenei, de 85 anos, que detém a autoridade máxima no Irão, e a sua morte representa um desafio para as autoridades iranianas no sentido de garantir a estabilidade do sistema político. Mas os analistas apostam na continuidade da política externa de Teerão, domínio do ayatollah Khamenei e do Conselho Supremo de Segurança Nacional.

“Pode surgir um sucessor que seja tão conservador e leal ao sistema como Raisi foi”, referiu ontem na rede social X Ali Vaez, especialista em Irão do International Crisis Group. “Na política externa, o líder supremo e o Corpo da Guarda Revolucionária Islâmica continuarão a dominar as decisões estratégicas”, prosseguiu este académico, antecipando “mais continuidade do que mudança”.

Já Farid Vahid, especialista em Irão da Fundação Jean Jaurès, recordava ontem que “Raisi estava absolutamente em sintonia com o Corpo de Guardas”, o que “deixou muito espaço e liberdade para os Guardas na região”. Com Raisi, “a tomada de decisões foi muito fluida porque ele era completamente subserviente ao líder”, disse Vahid à AFP, sublinhando que agora “a questão para os conservadores iranianos é encontrar alguém que seja eleito e que não lhes cause muitos problemas”.

“A morte de Raisi pode ter chocado o Médio Oriente e o mundo, mas é pouco provável que altere a direção estratégica do Irão em termos domésticos ou de política externa. Apesar de Raisi deter o título de presidente, a sua autoridade estava limitada pelo líder supremo do Irão, a quem pertence o poder em última instância na República Islâmica”, escreveu ontem Jonathan Panikoff, diretor do Scowcroft Middle East Security Initiative do think tank norte-americano Atlantic Council. 

Ebrahim Raisi, de 63 anos, era considerado um  ultraconservador e um partidário assumido da lei e da ordem. Apresentando-se como defensor das classes desfavorecidas e da luta contra a corrupção, Raisi foi eleito a 18 de junho de 2021, na primeira volta de umas presidenciais marcadas por uma abstenção recorde e pela ausência de adversários de peso. Quatro anos antes tinha sido derrotado pelo moderado Hassan Rohani.

Nos últimos meses, tinha-se assumido como um firme adversário de Israel, o inimigo declarado da República Islâmica, apoiando o  Hamas desde o início da guerra na Faixa de Gaza. Figurava também na lista negra dos Estados Unidos de responsáveis iranianos sancionados por “cumplicidade com graves violações dos direitos humanos”, acusações que as autoridades de Teerão rejeitaram, classificando-as como nulas e destituídas de consequências.

O primeiro vice-presidente do Irão, Mohammad Mokhber, assumiu a presidência de forma interina, enquanto o país se prepara para eleições antecipadas, conforme está estipulado que aconteça “em caso de morte, demissão, ausência ou doença do presidente por mais de dois meses” pela Constituição iraniana. Este documento estabelece ainda que eleições presidenciais para escolher um sucessor permanente serão realizadas no espaço de 50 dias. 

Segundo a televisão estatal, as presidenciais antecipadas terão lugar a 28 de junho. Caso não tivesse morrido neste acidente, Raisi terminaria o seu mandato no próximo ano.  “Mesmo assim a morte de Raisi deixa um vazio de poder no Irão. (...) Mokhber é improvável que tenha alguma influência significativa ou que procure suceder a Raisi, explicou Panikoff. 

Umas eleições presidenciais antecipadas que serão “uma dor de cabeça que o regime quase de certeza teria preferido evitar”. “O Conselho dos Guardiães - o órgão que determina que candidatos são leais o suficiente à ideologia da República Islâmica permitindo-lhes concorrer -  pensava que tinham em Raisi um líder que levaria o Irão à próxima geração, provavelmente uma pós-Khamenei”, afirmava ontem o diretor do Scowcroft Middle East Security Initiative.

“Com este plano agora desfeito, o Conselho dos Guardiães será provavelmente mais rígido em relação a quem permitirá fazer campanha, determinado a garantir que o próximo presidente pode defender e proteger a revolução num tempo de revolta doméstica e regional”.  

Tensões com Israel

A morte de Raisi ocorre num momento de alta tensão entre Teerão e Israel, na sequência da guerra em Gaza, após os ataques do Hamas a Israel em 7 de outubro. Estas tensões atingiram o seu ponto alto em meados de abril, quando o Irão realizou um ataque sem precedentes contra Israel, lançando 350 drones e mísseis, a maioria dos quais foram intercetados com a ajuda dos Estados Unidos e de outros aliados.

Teerão também apoia o chamado Eixo de Resistência contra Israel - uma rede de grupos armados que inclui o Hezbollah do Líbano, o  Hamas e os rebeldes Houthis no Iémen. “Será o status quo”, acredita Jason Brodsky, especialista nas relações do Irão com estes grupos no Middle East Institute. “A Guarda Revolucionária Iraniana reporta ao líder supremo e faz a ligação com o Hezbollah, os Houthis, o Hamas e as milícias em toda a região. O modus operandi e a grande estratégia da república islâmica permanecerão os mesmos”, acrescentou, em declarações à BBC.

Esta segunda-feira, o negociador nuclear de longa data do Irão, Ali Bagheri, foi nomeado ministro interino dos Negócios Estrangeiros em substituição de Hossein Amir-Abdollahian, que também morreu no acidente de helicóptero. “O Ministério dos Negócios Estrangeiros iraniano já tem um novo chefe e a mesma prioridade: negociações sobre o programa nuclear”, disse  ontem na rede social X Hasni Abidi, diretor do Centro de Estudos e Pesquisa para o Mundo Árabe e Mediterrâneo em Genebra.

Também neste campo, segundo Jason Brodsky, “o programa nuclear do Irão e a tomada de decisões em torno dele permanecerão inalterados porque, no final das contas, é o líder supremo e o Conselho Supremo de Segurança Nacional que supervisionam o arquivo nuclear”. Já Vahid defende que só haveria uma mudança radical na política externa do Irão em relação a Israel ou aos Estados Unidos ou ao seu programa nuclear se houvesse “uma mudança de regime”.

O Irão nega querer adquirir armas nucleares, mas já não cumpre os seus compromissos ao abrigo do acordo de 2015 com as potências mundiais, que limitou as suas ambições nucleares em troca do levantamento das sanções internacionais. O pacto, conhecido pela sigla JCPOA, desmoronou após a retirada unilateral em 2018 dos Estados Unidos, liderado então por Donald Trump, que levou à reimposição de sanções esmagadoras a Teerão.

Cinco dias de luto

Os destroços do helicóptero que desapareceu no domingo foram descobertos ao amanhecer desta segunda-feira na encosta de uma montanha, na zona de Kalibar e Warzghan, na província do Azerbaijão Oriental, onde o aparelho se despenhou por motivos ainda desconhecidos. O chefe do Estado-Maior das Forças Armadas iranianas, Mohammad Bagheri, já ordenou uma investigação sobre as causas do desastre.

O líder supremo Ali Khamenei decretou cinco dias de luto pela morte de Raisi, sendo que as cerimónias fúnebres do presidente iraniano devem iniciar-se hoje em Tabriz, noroeste do país, indicou a agência oficial iraniana.

ana.meireles@dn.pt