Ex-diretor das secretas em entrevista DN-TSF
24 maio 2024 às 10h04
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Jorge Silva Carvalho: “Os nossos serviços de informações não têm preponderância no espaço securitário nacional”

O ex-diretor das secretas, Jorge Silva Carvalho, atualmente consultor de segurança, estratégia e informações, lamenta a “menorização” dos serviços de informações. Valoriza a gestão dos “silêncios” de Margarida Blasco, elenca os riscos da imigração ilegal e fala do erro de "lesa-pátria” que foi o fim do SEF.

Tendo por base a sua experiência de quase 30  anos nos serviços de informações, entre os quais como diretor-geral do Serviço de Informações Estratégicas de Defesa (SIED) com que autoridade fica uma chefe máxima dos Serviços de Informações, estou a falar da embaixadora Graça Mira Gomes, secretária-geral do Sistema de Informações da República Portuguesa (SIRP), quando aceita manter-se no cargo sobre as ordens de um primeiro-ministro, Luís Montenegro, que quando era líder da oposição lhe retirou a confiança política?
A senhora embaixadora tomará as decisões que entender ao nível pessoal.  Em relação à posição do Sr. primeiro-ministro, entendo que há uma diferença grande entre ser líder da oposição e ser primeiro-ministro.

O primeiro-ministro deve mostrar alguma noção de razão de Estado e, portanto, presumo que nessa sua decisão terá de ter ponderado os interesses nacionais e interesses superiores que provavelmente poderiam não passar pela sua opinião enquanto chefe da oposição. Isso só fica bem a um primeiro-ministro.

Eu, provavelmente, numa circunstância dessas dificilmente aceitaria ficar. No entanto, qualquer mudança nos serviços de informações deve ser pensada sempre de uma forma muito estruturada. E deve ser pensada porque são entidades relativamente frágeis e, por outro lado, muito importantes. Poderiam ser muito mais importantes em Portugal, do que efetivamente o são.

Os serviços de informações hoje, no panorama geral da segurança internacional e da segurança nacional, são talvez o instrumento mais importante, sobretudo para potências mais frágeis como Portugal.

Para potências que têm uma dependência muito grande em relação àquilo que é a influência externa. Porque hoje a nossa segurança interna depende quase exclusivamente de fatores externos.

E a segurança internacional é a mesma coisa. Os interesses estratégicos de Portugal, os interesses nacionais, dependem claramente do conhecimento da realidade.

Termos um instrumento que nos garanta um conhecimento atempado, que nos permita agir de forma preventiva, conhecedora, é fundamental. E, infelizmente, os serviços de informações são, há alguns anos a esta parte também, de alguma forma menorizados por um conjunto de fatores, de incapacidades do próprio país e também por um conjunto de vicissitudes que os afetaram.  

A história dos serviços teve episódios algo controversos que dificultaram a evolução dos próprios serviços. Mas existe em Portugal e na macroestrutura política portuguesa uma falta de conhecimento grande para a atividade de informações, uma falta de perceção da importância das informações e, sobretudo, a vontade de apostar efetivamente nas informações.

À escala europeia, os serviços portugueses são claramente aqueles que continuam a não ter capacidades que todos os outros têm, todos os outros serviços europeus têm e não só ao nível eletrónico. 

Está a falar das interceções telefónicas, por exemplo.
Também. Mas depois há limitações e constrangimentos que têm a ver com o próprio investimento financeiro. A atividade de informações não é uma atividade cara quando comparada com a atividade de segurança pública ou com a atividade da defesa nacional.

Não há equipamentos para se comprar. Tem de se apostar nas pessoas, em formação, em capacidade de gerir operações, de trabalhar no exterior, de desenvolver atividade de risco. E é toda essa atitude que falta.

Neste momento, pelo que descreve, os nossos serviços de informações são inúteis?
Não. Os serviços de informações são dotados ainda hoje de gente muito capaz. Também a sua estrutura humana tem algum nível de estagnação por força da própria evolução. As pessoas envelheceram, aquilo que era um grupo de pessoas que começaram no serviço na década de 90, hoje estão próximas da reforma.

Não rejuvenesceu?
Rejuvenesceu de alguma forma, mas não com a dimensão que deveria ter sido feita. Dito isto, é preferível arriscar e cometer erros. E um país tem de ter noção de que os erros, desde que não sejam patológicos, podem ocorrer.

E temos de viver com eles. Podem ser erros de apreciação individual, podem ser erros da chefia, podem ser erros do técnico ou da operação que correu mal. Mas esses erros, se forem feitos à luz do interesse nacional, se forem feitos à luz daquilo que é a missão última dos serviços, a proteção do país, a proteção das pessoas deste país, a proteção dos nossos interesses, esses erros têm que ser ajustados e o país tem que ter uma capacidade de gerir isto, tendo em conta o interesse de Estado.

Faltando isso tudo, os serviços estarão sempre numa posição menorizada e menos flexível para poderem ir atrás daquilo que é importante, que é a informação. E é informação decisiva, qualificada.

Não tem a ver só com terrorismo, não tem a ver só com espionagem, com atividade de potências estrangeiras no nosso território ou contra nós, e isso acontece em vários sítios.

Portugal tem interesses estratégicos em determinados países, países dos quais depende economicamente, países onde tem população portuguesa de grande dimensão, e tudo isto interessa para Portugal, porque se não prevermos isso, se não tivermos uma noção do que está a acontecer e não conseguirmos antecipar, não somos um país que tenhamos os meios para agir em força para agir para retirar uma população de 100 mil pessoas de um determinado país, para conseguir evitar uma catástrofe, para conseguir limitar, por exemplo, a perda do acesso a recursos naturais dos quais dependemos, gás, petróleo, etc..

Não temos a capacidade dos Estados Unidos, de um Reino Unido, que têm força militar capaz de agir, mesmo que percam os primeiros 100 metros, têm depois a capacidade para reagir. Nós não teremos essa capacidade para reagir.

Ainda sobre a embaixadora Graça Mira Gomes, acha que foi um incidente, o facto do então líder da oposição, agora primeiro-ministro, ter dito que retirava confiança política à chefe dos serviços de informação? 
Acho que foi mais que um incidente, é um incidente grave. 

Mas está sanado?
Para o senhor primeiro-ministro estará sanado, porque  tomou a decisão, para já, de não mexer nos serviços de informação.

E a credibilidade dos serviços?
É irrelevante neste momento, porque os serviços de informações, como digo, infelizmente, não têm essa credibilidade e sobretudo não têm essa preponderância no espaço securitário e de defesa nacional. Infelizmente.

Porque poderiam, mesmo com a atual capacidade  instalada nos serviços, render francamente mais.

No livro que escreveu eu 2018 (“Ao serviço do Portugal)  descreve  a atual ministra da Administração Interna, Margarida Blasco, com quem trabalhou quando ela era diretora-geral do Serviço de Informações  de Segurança (SIS)  como  “uma senhora descontraída, ligeira, simpática, preocupada com os vestidos e com as viagens internacionais”. Como é que vê agora a Dra. Margarida Blasco?
A senhora ministra da Administração Interna merece-me todo o respeito por ser a ministra da Administração Interna de Portugal e certamente não contarão comigo para diminuir uma pessoa que tem a missão de gerir uma pasta tão importante para o país. As minhas opiniões do passado reitero-as, é uma recordação muito pessoal de um determinado momento da vida em que me expressei.

O  ministério da Administração Interna é hoje uma pasta central para o país a vários níveis. A Dra. Margarida Blasco é uma pessoa que tem uma experiência já consolidada, que não tinha na altura quando foi diretora do SIS. Hoje, fruto da sua experiência na IGAI, já tem um lastro de conhecimento que deve ser relevante.

Diria que o Sr. primeiro-ministro, nesse aspeto, esteve bem. Acho que é importante para o país e ter uma senhora na Administração Interna, uma área particularmente masculinizada, tal como a Defesa.

Acho que é importante termos alguém que venha com uma boa estrutura de conhecimento legal, jurídico, que venha da magistratura também. Portanto, nesse aspeto, a Dra. Margarida Blasco corresponde. 

Qual é o ponto fraco?
É um Ministério que vai estar sob fogo cerrado para o aproveitamento político por parte de outros partidos da oposição. Em particular de um partido à direita da coligação governamental.

Nem sempre esse debate se fará de uma forma leal. Haverá muita tentação de usar as estruturas sindicais, haverá muita tentação para usar isso para uma guerra sem quartel. E depois há um tema em particular, que é o tema da imigração, que é muito aberto também a todos os populismos e a todos os aproveitamentos que se possam querer fazer.

A Dra. Margarida Blasco tem, na minha opinião, uma vantagem grande. É uma pessoa que gere silêncios e é importante a gestão desses silêncios, mais do que se expor a debates que depois revelarão mais fragilidades.

A forma como foi extinto o SEF é uma fragilidade?
Acho isso um disparate de dimensões incomensuráveis. Se há coisa que foi feito de mal feito, de quase lesa-pátria em termos de reforma do país, foi a extinção do SEF. O SEF, independentemente dos seus defeitos e das suas dificuldades, era uma organização que representava um avanço civilizacional.

Nós regredimos civilizacionalmente. A separação das coisas pode parecer bem. Se fôssemos um país de uma determinada matriz organizacional, não faria muita diferença dividir as atividades, a atividade policial ou de investigação criminal, e a atividade administrativa.

O problema é que somos um país avesso a fórmulas de cooperação. Não temos na nossa matriz genética, da organização pública, somos um país de casas fechadas. E, mais ainda, não somos um país que tenhamos enfrentado dificuldades extremas em matéria de segurança pública ou de segurança interna.

Os países que as enfrentaram, países que estão permanentemente sob o foco do terrorismo, da violência urbana, de determinadas atividades agressivas que causam baixas na população, países europeus, o Reino Unido, a própria Espanha, que teve uma situação de terrorismo interno de grande gravidade, França, o Reino Unido, as entidades aprendem a cooperar em matéria de segurança. Sabem que se não cooperarem as pessoas morrem ou pode haver dramas.

Em Portugal isso nunca aconteceu. Nós vivemos numa espécie de jardim à beira-mar plantado em que as coisas vão correndo bem, porque a rede de amigos, a rede de contactos, as coisas vão-se falando e vão-se resolvendo. Mas nunca tivemos um stress test desta estrutura. 

Não foram provocadas pelas próprias falhas de que falava na organização do SEF? 
Não. Acho que essa foi, aliás, a coisa mais terrível que foi feita. Foi uma liderança política que aproveitou um momento muito mau da história de uma organização para colocar quase que a infâmia sobre toda a organização, aproveitando esse momento para pôr em causa a organização e as pessoas que dela faziam parte. E isso da parte de  quem lidera o poder político é de muito mau nível.

É francamente mau. Mais, extinguiu-se um serviço, que era um serviço respeitado, com quadros respeitados. Hoje muitos dos nossos quadros de topo do SEF estão hoje no Frontex, por exemplo, e foram recrutados por mérito próprio. São pessoas que quase que os vieram recrutar como os bons jogadores de futebol.

E voltámos a ter o sistema, ou praticamente o mesmo sistema, que tínhamos antes com as polícias, com as forças de segurança, PSP, GNR, a PJ com a investigação criminal, o que tenho a certeza que será bem assegurado, porque a PJ é  uma entidade profissional.

Mas falta aquilo que havia com o SEF, que é uma coordenação in-house, uma coordenação dentro de casa completa e total. Em vez de se ter investido no SEF, em vez de se ter promovido uma reforma, em vez de se ter melhorado e ter atuado com uma cirurgia estripando o que estivesse de mal no SEF, não, fez-se uma coisa pior.

Criou-se um monstro que ainda está longe de conseguir e criou-se mais do que isso, pôs-se em causa a credibilidade nacional. Portugal hoje, por várias formas, não apenas pela extinção do SEF, é um país visto com reservas ao nível do espaço Schengen porque não estamos a cumprir a nossa parte. Hoje o nosso passaporte vale pouco, é visto como um passaporte de aquisição fácil.

Hoje a entrada de cidadãos da forma que é feita, não controlada, não verificada, sem nenhuma triagem, com imensas facilitações políticas, com pressões políticas inclusive sobre as embaixadas e consulados para que entrem pessoas, por motivos económicos e não só, Portugal tornou-se um bocadinho uma espécie de país que os nossos parceiros europeus, sobretudo os do espaço Schengen, olham com alguma renitência.

Isso coloca ao tema imigração, mais do lado da segurança ou mais do lado  social?
Percebo a pergunta, mas não considero que se possa sequer dizer que não se põe do lado da segurança ou do lado social. A questão da segurança é fundamental. Só pode haver uma resposta económica e social através da imigração se for assegurado o capítulo da segurança, porque senão, não é viável, porque mais tarde ou mais cedo vamos hipotecar tudo. Nem sequer para as próprias pessoas que vêm.

Ou seja, o primeiro filtro tem de ser eficaz.
E securitário, claramente. O primeiro filtro passa por dois momentos. Uma coisa que Portugal nunca quis fazer, porque dá trabalho, que é selecionar o que é que queremos como perfil de imigração económica.

Temos necessidades, claramente, e temos também uma necessidade conexa de substituição, de preenchimento da própria população, tendo em conta o decréscimo que a população portuguesa tem sofrido.

Mas tomar decisões políticas, independentemente de elas serem criticáveis. É legítimo trazer pessoas do espaço lusófono, por exemplo, que são pessoas com a nossa matriz linguística, que são quem  querem vir para Portugal,  que querem vir trabalhar, que sempre vieram, dar-lhes mais condições para que essas pessoas venham em detrimento de pessoas de outras origens? Na minha opinião, claramente que sim.

Mas com isso não se está a fazer uma discriminação? A escolher os imigrantes?
A discriminação é do nosso direito. A discriminação subjetiva e económica. 

E a questão humanitária das pessoas que fogem das guerras? 
É diferente. A questão é precisamente a questão fundamental. O que se está a fazer, e a partir do momento em que se baixa o filtro, em que se deixa de ter em atenção aquilo que é a imigração económica, que é necessidade nossa, e também a necessidade das pessoas que para cá vêm, e que deixamos de filtrar, de escolher, de tomar decisões, e deixamos vir ao desbarato só estamos a fazer duas coisas.

Na área económica, estamos a deixar que continuemos a fazer prevalecer uma economia de baixo valor. Porque, no fundo, vêm pessoas pouco qualificadas, porque não as selecionamos em função das necessidades que o país tem em termos económicos, não as selecionamos em função das suas características e, sobretudo, do seu contributo futuro, da sua formação ou conhecimentos profissionais.

E estamos a pôr em causa uma outra coisa. Estamos a inundar o país de pessoas que, legitimamente, querem vir trabalhar para sítios melhores, estamos a sobrecarregar determinadas áreas do país, não estamos a tirar vantagens, estamos a perpetuar uma economia de baixo valor, que é aquela que ainda temos.

Pior, assustam-se. Quando as pessoas têm medo, têm medo. E reagem em função do medo. A minha função como técnico securitário é aconselhar a fazer as coisas de forma diferente e os decisores políticos têm de ter em atenção se querem lidar com esse medo ou se querem lidar com uma integração estruturada das populações estrangeiras.

Este medo que está a ser criado pela inundação imigrante, estes receios e o aproveitamento populista que é feito disso, põe em causa a própria política de refugiados.

Porque as pessoas em Portugal e as pessoas na Europa em geral, passam a ter menos flexibilidade para entender as pessoas que vêm em fuga, que vêm por necessidade humanitária. Sobretudo quando essa necessidade humanitária é invocada por tudo e mais um par de botas, perdoem-me a expressão.

Se calhar do outro lado a porta está fechada, não é?
Não, não está. Aliás, a imigração ilegal, primeiro, é óbvia, mas a União Europeia não tem sequer espaço para agir da forma que deve agir. Porque neste momento é utópico pensar que Portugal, ou qualquer país europeu, consegue lidar com os problemas do mundo.

Se pensarmos um dia que a China tenha um conflito interno e pensarmos que 500 milhões de habitantes da China vão fugir para a Europa, estamos conversados. O que a Europa tem de fazer é olhar para a sua política externa, cada vez mais numa lógica de prevenção destas situações.

E aí a Europa continua a ser um anão político internacional. Há muito apoio individual, há muitos países a desenvolverem políticas individuais, mas não há uma política coletiva de antecipação do problema da imigração. Claramente que as coisas depois de acontecerem, é difícil não lidarmos com elas.

O que aconteceu na Síria é um desastre humanitário de proporções gigantescas, assim como o que veio do Afeganistão. Mas a solução não é acolhermos todas as pessoas, é tentarmos resolver na origem e evitar que essas pessoas também percam.

Não tenho dúvidas nenhumas que qualquer afegão preferia ficar na sua terra desde que tivesse condições de criar a sua família.

Sendo que resolver na origem não é necessariamente pagar para as pessoas ficarem lá retidas...
Não é forçosamente pagar, mas é ajudar a que as coisas se possam compor. Por outro lado, como a Europa, em particular a Europa, mas também os Estados Unidos, está  a  ser alvo desta imigração, esta imigração ilegal, estes refugiados, está a ser usada como arma, por regimes autoritários, por regimes que são hostis aos países europeus e democráticos, liberais, e que querem pôr em causa esses países com essa imigração.

A Turquia foi dos primeiros países a usar essa arma, a Rússia está a fazê-lo, outros países estão a fazê-lo. Isso para quê? Para provocar o desequilíbrio em países que eles veem como países hostis, porque a Rússia vê o espaço europeu como uma área hostil aos seus interesses.

E, portanto, também não os quer, não quer esses imigrantes na Rússia, não quer esses imigrantes na Turquia, toleram-nos até certo ponto, mas preferencialmente querem encaminhá-los. Portanto, acho que devíamos questionar mais isso e menos a capacidade europeia, porque às vezes na Europa e nos países europeus, temos uma mentalidade hoje que se tornou mais evidente que é a mentalidade do coitadinho. E achamos que devemos ser mais bonzinhos que os bonzinhos e depois estamos a fazer o jogo de terceiras pessoas que não têm o mínimo pejo em tratar essas pessoas que vêm e que são pessoas penalizadas pela vida e tratá-las como se fossem, primeiro, um instrumento até de guerra, mas sobretudo sem a mínima preocupação humanitária, sem a mínima preocupação de qualquer modo.

E, portanto, despejando em nós. E nós estamos a ser autofágicos. 

Entende que estes fluxos de imigração podem ser associados diretamente à importação de métodos ou de redes criminosas para Portugal?
Sem qualquer dúvida. 

Mas na mesma proporção? Ou seja, se aumentar a imigração aumenta na mesma proporção o risco de importar redes criminosas ou métodos? 
Neste momento, e isso são dados relativamente públicos, mas mais do que dados públicos, grande parte da imigração de determinadas origens, vou citar só duas ou três, indo-paquistaneses e a imigração vindo do Brasil, grande parte dela já é controlada por redes ilegais.

Isso é na origem?
Na origem e não só. Porque, tal como o tráfico de droga, rapidamente essas redes se estabelecem nos países de destino. Portugal será mais ponto de receção do que de destino, porque muita dessa imigração também não fica aqui e isso é pernicioso porque os decisores políticos sabem disso.

Claro que pensaram nisso só em termos económicos, sabem que Portugal tem pouca capacidade de reter a imigração. Porquê? Porque as pessoas estando no espaço Schengen preferem ir para economias mais desenvolvidas. Até economias que lhes deem outras condições, que paguem subsídios maiores, que tenham outro tipo de apoio, que haja mais emprego.

Então são fatores de fragilidade de Portugal no contexto internacional?
Sim, mas o que estamos a fazer é enxaguar. Até facilitamos a nacionalidade portuguesa, como se fosse uma coisa que é dada quase que por prémio, como se fosse um diploma universitário.

O que também tem uma perda de valor inerente, porque as pessoas que aqui adquirem uma nacionalidade e em muitos países do mundo adquirem-na com quase como uma opção de vida, com brio, querem ser parte daquela comunidade. 

Mas isso não cria um estigma? Se identificarmos esses pontos de origem como pontos complicados e também de importação de redes criminosas, então estamos a estigmatizar todos os que vêm de lá?
Não se fizermos as coisas como deve ser. Ou seja, não se o nosso sistema de controle de imigração começar nesses países como acontece com muitos países. Por exemplo o caso do Canadá ou o caso da Austrália.

A Austrália desde cedo e o Canadá desde cedo que escolhem, primeiro, o tipo de pessoa, o tipo de formação que querem, que necessitam. Se são médicos, enfermeiros, engenheiros, com a maior das tranquilidades. E fazem a sua publicidade e escolhem inclusive as nacionalidades.

Na Ucrânia, na Moldávia, na China, em Singapura, nos países que entenderem e têm quotas. Até fazem mais: atribuem zonas do país onde essas pessoas podem residir. São países profundamente democráticos. São países estabilizadíssimos. Nós não somos mais do que eles.

A diferença é só esta: essa filtragem tem a participação imediata dos serviços de informações através das suas próprias embaixadas e é feita no exterior. Neste caso, o serviço de informações canadiano e australiano tem uma componente de vetting securitário e migracional tendo em conta a organização, porque não tem o mesmo tipo de organização de fronteiras que nós temos e de polícia de fronteiras.

As pessoas que fazem a atividade estão lá e estão presentes na origem das pessoas. Estão presentes no país onde se vai recrutar. Vai-se dar oportunidades de uma forma aberta, porque estes sistemas são controláveis. Não são vítimas de corrupção, não são vítimas de chantagem, não são vítimas de pressão política.

Os sistemas canadianos e australianos estão testados e verificados e há toda uma accountability por parte das pessoas que trabalham nessas áreas. Não quer dizer que não tenham erros, mas é assim.

Portanto, o que eu defenderia para Portugal era uma coisa parecida, era uma atividade parecida e era uma política de imigração pensada. Que seja aberta, que seja baseada em fundamentos objetivos e que depois nos permita ter capacidade para sermos uma parte fundamental na política europeia de acolhimento aos refugiados.

Porque para isso é preciso ter capacidade financeira e disponibilidade. Agora, se está tudo amarrotado com a imigração ilegal, com a imigração que não é ilegal, mas que é excessiva, que é facilitada, não vai haver capacidade social nem boa vontade para acolher os refugiados. Vai ser só visto como um ónus e vai ser tudo misturado. Isso é o que está a acontecer na Europa.

Foi chefe quase três anos da chamada Casa da Rússia, uma unidade de contraespionagem do Serviços de Informações Estratégicas de Defesa (SIED) para os países da antiga URSS. Há dois anos tinha dito numa entrevista aqui no DN que o regime russo era um “cancro que só se estancava com a resistência da Ucrânia e com o drama que estava, e ainda está, a ser vivido pelo povo ucraniano que está a lutar também pela Europa”. Acredita que é possível ganhar a guerra que se agravou nos últimos dois anos?
Depende do que entender por ganhar. Entendo que é possível que a Rússia não triunfe na Ucrânia. E até lhe digo mais: coloco-me naquele grupo de pessoas em que entendo que não temos outra hipótese senão prevenir isso e impedir que a Rússia ganhe na Ucrânia.

Este regime russo é tudo aquilo que eu disse em 2022. Nada do que o regime russo esteja a fazer atualmente, nada dos mecanismos que usa, da forma como manobra e controla a informação e controla a desinformação em particular, me surpreende. Nada daquilo que tem sido a evolução interna do regime russo e a própria personalidade do presidente Putin me surpreende.

Surpreende-me, não obstante, a estupidez que existe no mundo ocidental, quer à direita, quer à esquerda, de pessoas que ainda defendem esse regime, que ainda, de alguma forma, numa lógica quase antiamericana e antiocidental, uns pretendem defender o regime russo.

Outros com saudosismos da lógica da União Soviética, como se fosse necessário ser pró-russo para ser antiocidental ou para ser antiamericano. Mas depois há outros mais graves ainda, que é uma extrema-direita e uma nova extrema-esquerda, mas uma extrema-direita em particular muito conservadora, que olha para o regime russo como uma salvaguarda de tudo aquilo que está errado para uma democracia.

E um financiador também.
Um financiador também, e não só um financiador, mas sobretudo como uma bandeira. O regime russo tem um conjunto de contradições. É um regime neoimperialista e neocolonialista e, no entanto, todo o discurso é anticolonialista e de apoio aos países em relação ao contrariar as potências coloniais anteriores.

As potências coloniais anteriores são muito menos imperialistas atualmente do que é o regime russo. O regime russo é um regime expansionista como se vê na Ucrânia.

A extrema-direita e a direita populista olham para o regime russo como o arauto do combate aos excessos do movimento woke, o combate aos liberalismos excessivos na política de integração das minorias, inclusive regimes autoritários, e já não é só a Rússia, mas regimes autoritários que na Europa hoje são muito acarinhados por alguns grupos de extrema-direita e de extrema-esquerda e que são profundamente repressivos em relação ao direito das mulheres, em relação aos próprios direitos democráticos mais básicos, o direito a voto, o direito a eleições.

Estas eleições na Rússia não são eleições, são uma charada destinada a endeusar o senhor Putin. Todos nós sabemos disso, mas, por exemplo, é triste ver órgãos de comunicação social em Portugal, para falarmos do mais óbvio, a fazerem títulos como “Eleições. Putin ganha com X%”, como se tivessem sido eleições efetivas.

Assumirmos isso é de alguma forma legitimarmos e pormos aquela charada de democracia ao nível daquilo que são as nossas democracias, por muito imperfeitas que sejam. Portanto, a Rússia não vai parar. A Rússia olha para nós e vai usar sempre esta dupla face. A Rússia tem a lata, recentemente o senhor Putin e o regime, de questionar Portugal e de uma posição de hostilidade. Há dois anos declarou Portugal seu adversário por fazer parte da NATO e da União Europeia.

Portanto, Portugal que nunca fez nada contra a Rússia foi logo posto nesses termos. Não temos hostilidade nenhuma em relação à Rússia. Nem Portugal, nem nenhum dos nossos líderes políticos têm alguma hostilidade em relação a Rússia.

Temos hostilidade em relação às práticas da Rússia e em relação ao senhor Putin e em relação àquilo que ele defende internamente, que é uma posição protofascista dentro do seu país.

O senhor Putin é um protofascista. Exatamente com a mesma mentalidade e com o perigo de se tornar uma espécie de novo nazismo na Europa. E isso, por mais cores que lhe ponham e por mais gente que em Portugal possa achar que, com base na sua motivação política ou ideológica antiamericana, antiocidental, possa defender.

Ficou surpreendido com o acordo militar feito entre São Tomé e Príncipe e a Rússia?
Não. Temos dentro do espaço lusófono países que são praticamente inviáveis. Houve uma altura que São Tomé e Príncipe  tinha relações diplomáticas com Taiwan.

É um país muito frágil em termos económicos, muito frágil também em termos políticos. Portanto, não me admira que num determinado momento, num determinado contexto isso aconteça. Não foi São Tomé que foi bater à porta dos russos.  E, portanto, de onde venha dinheiro .... , perdoe-me a expressão. Poderia dizer-se o mesmo na Guiné-Bissau. 

Mas isso não foi um vazio deixado por Portugal também? 
Sim, mas isso é um vazio grave. Podemos dedicar quase um tema de uma entrevista a isso e tem muito a ver com o que se passou no último governo, mas também nos governos anteriores, porque Portugal tem-se vindo a demitir da sua componente de interesses nacionais na lusofonia.

A lusofonia tem vindo a tornar-se um parceiro menor e uma área de política internacional menor porque é incómoda. É incómoda perante uma determinada mentalidade que graça hoje na esquerda portuguesa, que é lidar com as ex-colónias, como se isso fosse uma tragédia ou fosse um problema.

Não é, não temos de ter vergonha da nossa história, tem aspetos muito positivos e tem aspetos negativos, mas temos povos irmãos, porque com Angola, com Moçambique, com todos os países lusófonos, temos uma relação quase de irmandade.

Só quem não conhece a realidade é que não percebe como as comunidades angolanas e portuguesas estão, por exemplo, interligadas, ou a cabo-verdiana. Só quem não tem a capacidade de olhar para Timor-Leste e não percebe o que é o peso histórico e o peso social e demográfico das relações entre os dois países.

Se olharmos só num contexto económico, então de um contexto puramente económico podemos desvalorizar. O que acho é que Portugal, e foi assumido também pelo anterior governo, claramente que se passou a dedicar aos assuntos europeus de uma determinada forma.

É mais fino estar na Europa, tem cargos disponíveis, etc. Acho que Portugal aí tem de recuperar e muito, até porque tem um papel para a nossa economia, para a nossa imigração, com a vantagem, por exemplo, de facilitar muito a integração social. Porque nos países da lusofonia temos pessoas qualificadas.

Mesmo a nossa economia de baixo valor precisa de trabalhadores que poderiam vir claramente das ex-colónias e que poderiam integrar-se facilmente em Portugal. Portugal não é um país que discrimina tradicionalmente em função da cor.

Nós estamos habituados a sermos pessoas multiculturais e multicoloridas, digamos assim. Somos um país, só quem não nos conhece, somos um país que poderia ter passaportes que tem pessoas de origem chinesa, de origem timorense, de origem goesa e continuaremos a ser assim.

E, portanto, fazer o contrário é que está a insuflar em Portugal novos estigmas e novas reações muito provocadas pelo medo, pelo receio, por algumas resistências e pelo alimentar de alguns medos também politicamente, que criam depois resistências à imigração.