"Se o Dr. Jorge Sampaio porventura quiser falar disto civilizadamente perante as câmaras de televisão, eu tenho todo o gosto", declarou ontem à noite o ex-primeiro-ministro na SIC Notícias.
Santana Lopes comentou assim declarações atribuídas ao ex-Presidente da República Jorge Sampaio no livro em causa, a propósito da decisão de dissolver o Parlamento (novembro de 2014) e provocar eleições antecipadas, sendo então Pedro Santana Lopes o chefe do Governo.
"Fartei-me do Santana como primeiro-ministro, estava a deixar o país à deriva, mas não foi uma decisão ad hominem. Ninguém gosta de dissolver o Parlamento e eu tomei essa decisão em pouco mais de 48 horas. Hoje faria o mesmo, porque era preciso", disse Sampaio, segundo a obra biográfica.
Ontem à noite Santana Lopes respondeu ao ex-Presidente: "Compreendo que Jorge Sampaio tenha peso na consciência porque a decisão dele é que pôs o país à deriva".
Veladamente, acusou Sampaio de ter oferecido a governação a alguém - José Sócrates - que agora é o principal arguido num processo onde são muitas as suspeitas de corrupção, a "Operação Marquês".
"Veja a semana em que o livro aparece, veja só", disse ontem Santana. "Eu acho que ele [Sampaio] deve viver nesse tormento. Essa dissolução deu origem aquilo de que andamos a falar todos os dias."
Na mesma intervenção, Santana Lopes disse ainda serem "coisas de criança" as alegações de que ele e Durão já tinham há muito tempo arquitectado que o primeiro sucederia ao segundo no cargo de primeiro-ministro, quando chegasse o momento de Durão rumar a Bruxelas.
Nas suas memórias políticas, Sampaio diz que voltaria dar posse a Santana Lopes, apesar de não ter o poder legitimado por uma vitória nas urnas. O seu então chefe da Casa Civil, João Serra, notou no entanto que foi exigida "continuidade nas políticas", designadamente nas Finanças e nos Negócios Estrangeiros, e vetado o nome de Paulo Portas para esta última pasta.
"Conhecia-se a ambição de Paulo Portas em ser ministro daquela pasta, mas devido ao seu passado eurocético, o Presidente alertou para as dificuldades em o nomear", revelou João Serra. Portas terá ficado "magoado" por não ter chegado aos Negócios Estrangeiros, o que viria a acontecer anos mais tarde, entre 2011 e 2013, durante o executivo liderado por Pedro Passos Coelho. Serra contou também que foi Jorge Sampaio quem sugeriu o nome do embaixador António Monteiro para chefiar a diplomacia e que Santana Lopes concordou de imediato.
No livro, são narrados vários daqueles que ficaram conhecidos em Belém como "episódios rocambolescos" do consulado de Santana Lopes, desde logo o ato de posse - com Portas a ignorar que ficara com a tutela dos Assuntos do Mar e a dificuldade do chefe do Governo em ler o discurso.
Mas também a demissão de Henrique Chaves, até aí um indefetível de Santana, o ruidoso 'bater de porta' do então comentador da TVI Marcelo Rebelo de Sousa na sequência das críticas do ministro Adjunto Rui Gomes da Silva ("Nem o PS, o PCP e o Bloco juntos conseguem destilar tanto ódio ao primeiro-ministro e ao Governo") e o veto à "central de comunicação" que o executivo pretendia levar por diante.
Jorge Sampaio justifica a utilização da chamada "bomba atómica" com a alteração da situação política, no que é corroborado pelo seu então conselheiro Alberto Laplaine Guimarães, segundo qual os empresários, que no início defenderam a nomeação de Santana, já só queriam eleições antecipadas.
O ex-chefe de Estado recorda que deu posse a Santana Lopes contra a vontade da sua família política, o PS, e reconhece que isso até lhe custou amizades pessoais. "Eu não fiz em julho de 2004 aquilo que a minha gente queria que fizesse e houve mesmo quem me acusasse de traição ao meu eleitorado. Mas não há, de todo, nenhuma ligação entre a nomeação de julho e a dissolução de dezembro, que foi a hecatombe", assegura.
Segundo garantiu, é "completamente mentira" a versão de que tudo foi arquitetado em Belém, alegando que foi "uma situação concreta em cada momento" e, no final, uma "situação de rutura". "Ainda hoje há quem pense que foi tudo uma artimanha, uma dissolução clínica e conspirativa. Mas quem é que hoje em dia, em política, faz previsões a seis meses? E custou-me todas as críticas que se conhecem e uma amizade que durou anos a compor..."
"De vez em quando é preciso dar voz ao povo - e percebi qual era o sentimento do povo", sublinha. Nas legislativas de 2005 o PS, liderado por José Sócrates obteve, com 45%, a primeira - e até agora única - maioria absoluta da sua história, enquanto o PSD, com Santana à frente, se ficou por um dos seus piores resultados de sempre, 28,77%.
Apesar de ter permitido a Santana um consulado de poucos meses em São Bento, o ex-chefe de Estado garante que a dissolução "não foi vingança", até porque "tinha boas relações pessoais" com o ex-primeiro-ministro.
"A minha relação com Santana era muito franca e cordial. Não tinha (nem tenho) nada de pessoal contra ele - tenho até estima. O Presidente tem de ter um diálogo com o primeiro-ministro na base da confiança e tive conversas muito positivas com ele. Pediu-me opinião várias vezes, dei-lhe conselhos francos, mas estive sempre preocupado com o desenrolar dos acontecimentos, que se precipitaram muito rapidamente até descambarem na confusão."
A fechar este capítulo, Sampaio voltou a defender a bondade da sua decisão de devolver a 'palavra' ao povo, apesar de compreender a amargura de Pedro Santana Lopes. "Ninguém gosta de ver dissolvida uma Assembleia onde está em maioria, mas a verdade é que a maioria absoluta estava a desconjuntar-se."