21 janeiro 2016 às 00h55

Campanhas cruzadas. À corrida pelas cinco principais corridas a Belém

O que é suposto ser uma campanha? Para que serve? Como se avalia, como se distingue das outras? E há olhares imparciais? Marcelo, Nóvoa, Belém, Marisa e Edgar de relance

Fernanda Câncio

Há coisas sobre as campanhas eleitorais que o comum das pessoas desconhece. Por exemplo, que são uma canseira para todos os envolvidos: muitos quilómetros galgados, poucas horas de sono, fome q.b. e desesperos por uma casa de banho. E que para acompanhá-las jornalisticamente é preciso suspender a autoestima: há poucas coisas tão ridículas como passar o dia a correr atrás de candidatos a tentar (as mais das vezes sem conseguir) perceber o que estão a dizer e a ser consistentemente atropelado pelos repórteres de imagem das TV, que se creem intitulados ao melhor ângulo e à fila da frente mesmo que isso implique abalroar tudo o que esteja no caminho. Que o diga o septuagenário que, numa arruada de Edgar Silva no bairro da Graça, se queixava de ter levado "uma cacetada aqui nos óculos".

Comecemos então por aqui: Edgar Silva, terça-feira, 12 de janeiro, 17.30, percurso Sapadores-Largo da Graça, com bombos e entrada em dezenas de lojas. Nada predispõe mais ao trabalho jornalístico que um acompanhamento de tambores e palavras de ordem - "Edgar avança/ com toda a confiança" e "Vota no Edgar e o país tem de avançar/ esta vida vai mudar"- enquanto o candidato do PCP, fazendo jus ao slogan, vai, atlético e aprumado nos seus jeans skinny, cabelo sal e pimenta à escovinha e botas de camurça (arrebatando o troféu do mais bem vestido no setor masculino das presidenciais), interpelando pessoas pelo caminho, juntando sempre à palavra contacto físico, segurando-lhes as mãos e olhando-as nos olhos, aqui e ali passando mesmo por uma festa no rosto - sublinhando nesse esforço de empatia algo paternalista a anterior condição de padre.

Maria do Céu, 77 anos, é, no Largo da Graça, uma das últimas pessoas a quem entrega um panfleto. "Não sei dizer quem é. Conheço-o da TV." Mas tem aí no papel. "Não sei ler nem escrever. Só vejo na TV o telejornal. Entendo, falam em português. Outras coisas não." A morar há 41 anos no Caracol da Graça e a receber uma pensão de 360 euros ("que é uma fortuna", ironiza) depois de ter trabalhado como empregada doméstica, acha que "para votar é simples". E já decidiu em quem - cujo nome conhece, supõe-se.

Devia ser também para os candidatos se darem a conhecer aos transeuntes, além de alimentar a cobertura mediática e fazer bons "bonecos" para fotos e TV, que estas incursões na rua serviriam. Mas a notoriedade de uns e outros é muito desconforme. Marcelo, claro, não há quem não o identifique; Maria de Belém, com o seu passado de ministra de Guterres e mais de 20 anos de vida pública, é outra com alto nível de notoriedade, mesmo se nos primeiros dias de campanha se furtou a ações de rua, num circuito de lares, hospitais e unidades fabris, que só na sexta 15 interrompe com uma incursão numa feira. Edgar Silva e Sampaio da Nóvoa são muito menos reconhecidos; Marisa está a meio caminho: ser mulher, jovem e bonita ajuda num campeonato, a política, em que os homens de meia-idade e o cinzentismo imperam.

Mas regressemos a Edgar Silva, cujo dia tinha começado na Cova da Moura - jornalistas que o acompanham gabam a cachupa do almoço, sendo certo que havendo um troféu culinário partidário também seria para o PCP: não há partido que melhor atente ao estômago, a fazer jus a uma das frases do candidato, "só simpatia não enche a barriga" - e no início da tarde estivera na Casa do Alentejo, num encontro com reformados. Sendo certo que reformados serão, até à noite e ao comício em Odivelas, passando pelo jantar na Associação Recreativa do Dafundo (que junta umas sessenta pessoas), a maioria dos apoiantes - particularidade também discernida, embora de modo menos vincado, na campanha de Nóvoa; num jantar em Coimbra na segunda 11, tão à cunha que nem há mesa para jornalistas, a cor dominante de cabelo é cinza.

"Vê-se nas notícias que as pessoas estão alheadas, que não há envolvência, nem participação. Mas que aconteceu ao longo do dia de hoje?", questiona Edgar no discurso pós-jantar. "Não está tudo decidido. Antes do 25 de Abril é que as eleições eram um simulacro", reitera, prosseguindo na descrição entusiástica das várias ações do dia e passando ao ataque a Cavaco Silva, à sua "voz não portuguesa" e "preocupação com o que pensam os mercados", cujo domínio o candidato do PCP compara, inusitadamente, com "o longo jugo espanhol". A seguir dispara sobre Marcelo: "É um Cavaco a cores, um Cavaco que ri." Mas a crítica seguinte, se dirigida ao mesmo, encaixa também em Nóvoa: "Há toda uma linha que visa mostrá-lo como um independente apartidário e até apolítico. Como se tal fosse possível num candidato a PR." Quando termina, após aplausos aos quais o próprio se junta, na tradição Brejnev, é a que se ouve, como à tarde no Largo da Graça e mais tarde no comício. "É sempre o hino que usam. Nunca se ouve a internacional. E com este discurso nacionalista isto podia ser um comício do PNR", comenta, em tom perplexo, um dos jornalistas que se- guem o candidato.

Para quem passa pouco tempo com cada campanha numa tentativa de as comparar, pedir opinião aos que a acompanham dia-a-dia é uma forma de completar a observação. Parcelar e limitada, naturalmente, como tudo o que decorra da observação individual, e pondo em causa a máxima deontológica de que todas as opiniões devem ser atribuídas. Mas também desconstruindo, a benefício do público, a ideia peregrina de que jornalistas não as têm nem as podem ter. A maioria apenas não as revela abertamente. Por exemplo, de Marisa Matias dizem que é muito empática e afetuosa no contacto com as pessoas. Para além de autoderrisória, como demonstra na visita que na quarta-feira faz ao Conservatório Nacional, inteirando-se do estado lamentável do edifício (a precisar de obras urgentes) e das necessidades de manutenção do material (por exemplo, deixou de haver dinheiro para pagar a um afinador de pianos). "Não subestimem a minha capacidade de estragar coisas, digo por experiência própria", comenta, com a sua gargalhada rouca, afastando-se de um instrumento musical.

A "senhora futura", ou "senhora próxima", como lhe chamaram no início dessa tarde na Cova da Moura, onde, na esteira de Edgar Silva, esteve também, passa no entanto nos corredores da escola sem que alguns dos alunos a reconheçam. "São pessoas da televisão?", perguntam duas raparigas, atónitas com o aparato.

Mas a curta comitiva de Marisa, que inclui a jornalista Diana Andringa, percorre grande parte do edifício e continua a visita mesmo quando as câmaras de TV se eclipsam. "Os sítios que escolho não são inocentes", diz a própria. "São uma forma de dar a ver o perfil dos candidatos, qual o modelo de país que temos na cabeça." E de, como é o caso, chamar a atenção para questões ou casos. Com resultados surpreendentes. "Trabalho há sete anos com as questões do Alzheimer no Parlamento Europeu [foi relatora da estratégia europeia de combate a essa e outras demências, aprovada em 2011] e só numa peça de TV desta campanha um grupo de pessoas ligadas aos cuidados desses doentes descobriram isso e entraram em contacto comigo." Dirá algo de parecido no jantar-comício dessa noite, na sala da Voz do Operário: "Uma campanha é o rosto das candidatas e dos candidatos. É o pretexto para revisitar o que a escola pública [de que havia falado antes no discurso] nos ensinou. A possibilidade de conhecer pessoas com percursos todos diferentes, com tantos ensinamentos para no dar." E termina com um slogan: "Gente que não desiste de ser gente. Que se dá mas não se vende." As bandeiras coloridas erguem palmas na sala cheia (580 pessoas inscritas), na qual, como nos jantares de outros candidatos, o grisalho impera, e os pratos de bacalhau com broa ou rolinhos de frango com bacon, a 7,50 euros por cabeça são servidos.

Jantares e multidões não tem sido o forte da campanha de Maria de Belém - o primeiro jantar-comício, em Leiria, foi noticiado como "meio vazio", com a candidata, ao invés, a qualificá-lo como "meio cheio". Os jornalistas que a seguem falam mesmo de uma "fuga à rua": a primeira incursão na dita só ocorre na visita, sexta 15, à feira da Nazaré. "Mas toda a gente a reconhece", comentam. Nas fábricas que visita a 14 no concelho de Sintra, com uma pequena comitiva onde avultam Vera Jardim e Vitalino Canas, é muito bem recebida pelas operárias, que certificam: "É uma senhora muito carinhosa." Mas a opinião dos repórteres é um pouco diferente. "Ela nos primeiros dias não se aproximava de ninguém. Foi preciso estarmos a picá-la. Ontem [13] foi o primeiro dia em que se dirigiu às pessoas." E foi também o dia que terminou em Viseu com a participação especial de Jorge Coelho, o qual levou o contingente mediático às lágrimas de tanto riso. "Foi a primeira vez em que se percebeu haver máquina do PS. Parecia um comício de Nóvoa", graceja um dos jornalistas. Viseu é um distrito afeto à ala segurista do partido. E Coelho foi um show: "Desfez o Marcelo com aquele sentido de humor dele, aqueceu a audiência. Mas a seguir ela falou e arrefeceu." Encolhem os ombros: "Dá a ideia de que não faz esforço, que é a maneira de ela ser e não quer mudar."

Realmente não se pode dizer que haja um clima de entusiasmo ou sequer uma postura energética na campanha de Belém. Pelo contrário: sobram contenção e institucionalismo, visíveis no encontro no Grémio Literário com embaixadores de vários países. Estranhou-se porém que na semana em que um suicida do Daesh se explodira no centro de Istambul e estando presente o embaixador turco a candidata não referisse o assunto. Como que a questões de duas embaixadoras sobre qual a sua agenda em prol dos direitos das mulheres a ex- -ministra da Igualdade tenha respondido: "O importante é eleger uma PR, o resto vem por si."

Não: não é fácil perceber a lógica de algumas das campanhas. O fio condutor entre as ações, a existir um. O que leva a escolher esta ou aquela visita, esta ou aquela instituição. Presume-se que muito passará pelas indicações de estruturas locais de apoio, partidos, autarquias, e também pela necessidade de encher agenda. Por exemplo, no caso de Sampaio da Nóvoa, que todos os jornalistas reconhecem "uma surpresa" no contacto com a rua - "muito empático, funciona muito bem, comunica com as pessoas, tem à-vontade"; "parece ter ganhado um élan com os debates, que lhe correram bem e lhe aumentaram a notoriedade" - e ao qual desde o início não faltam feiras e outras ocasiões em que se confronta com muita gente, a terça de manhã é passada em algo áridas visitas a fábricas na Covilhã, com a companhia do presidente da Câmara, Vítor Pereira (PS): uma têxtil e uma de tecnologia de frio. Na última, Nóvoa recebe um reforço de peso, Ramalho Eanes. O ex-presidente, porém, acaba a revelar que vê semelhanças entre Nóvoa e Cavaco (que também apoiou), enquanto a seu lado o candidato ajusta cara de poker driblando com profissional serenidade questões sobre tão pouco favorável associação, provando que se lhe falta a carreira partidária não carece de postura "política".

Para trás ficam as conversas com os operários, alguns dos quais não sabem com quem estiveram a falar: "É o candidato para a presidência. Não sei o nome. Já o vi na TV. O Marcelo sei quem é. Isto vai aparecer? Ai, logo me haviam de entrevistar a mim, Jasus", queixa-se Olga, 50 anos, num esgar. Em contraste, Rui Cruz, 62 anos, há 25 na fábrica de lanifícios Paulo de Oliveira, reage com quase indignação à pergunta. "Então não sei? Valha--me Deus. Sei muito bem, e acho que os dados estão lançados. É ele que vai ganhar. E digo-lhe mais: dez candidatos para quê? Eram só dois, os que têm hipóteses."

Hipóteses de ganhar é um bocadinho menos que aquilo que se augura a Marcelo Rebelo de Sousa, a estrela incontestada da companhia. Mesmo - ou talvez sobretudo - se surge a alguns olhares como caricatura. "Às vezes olho para ele e faz-me lembrar a personagem da Contra-Informação", diz um dos repórteres. É quinta de manhã, chove e Marcelo vai a uma escola secundária com nome de poeta árabe (Ibn Mucana), em Alcabideche, dar uma lição sobre a democracia portuguesa na biblioteca à pinha de alunos e jornalistas. "É o seu registo habitual", comenta outro jornalista: "Falar sozinho."

Algo que faz como poucos, exímio que é a ler interlocutores e plateias. É bem o one-man show que se tem descrito em todas as notícias; difícil, pelo menos neste tipo de ocorrências, desconcertá-lo, mesmo se a primeira pergunta dos alunos foi sobre se era verdade que Relvas estava a ajudá-lo na campanha (que não, respondeu; está afastado da política).

Oh, é inteligente, Marcelo. Isso ninguém pode negar. E assim sendo, não lhe pode passar despercebido o pendor autoirónico da sua lição, em que aponta o facto de a monarquia portuguesa ter sido a primeira a assumir o absolutismo e uma das que mais tarde (só no século XIX) o abandonou como algo que carimbou o país: "As pessoas habituaram-se a isso: durante muitos séculos o poder em Portugal foi absoluto. E quando derrotados os absolutistas ficaram na clandestinidade, não desapareceram. É esse país derrotado que cem anos depois vai apoiar Salazar." E conclui: "Uma coisa que muda muito lentamente são as ideias."

É certo. Por exemplo, a ideia de que os partidos e a política são coisas más, que cartazes e máquinas partidárias nem pensar (o diretor da sua campanha, nominalmente o ex-presidente da JSD Pedro Duarte, nunca aparece nem fala aos jornalistas), e que o bom é fingir ser muito poupado e comer de uma marmita, bastando um homem e o seu carisma, piadas e ditos generalistas para a comunicação direta com a alma portuguesa, ao mesmo tempo que se assevera que a campanha "não muda as ideias de ninguém". Para quê fazê-la, então?