21 fevereiro 2010 às 01h55

Os bastidores e os factos públicos que explicam o 'negócio da compra da TVI'

O caso político da TVI é central na polémica que envolve o primeiro-ministro. O DN reconstruiu o caso e as suas contradições.

ANA TOMÁS RIBEIRO e CARLOS RODRIGUES LIMA

As primeiras escutas telefónicas que constam do processo "Face Oculta" - e que dizem respeito à tentativa de compra da TVI pela PT - remontam a 28 de Maio de 2009. Este é o ponto de partida para um puzzle, no qual a colagem das peças se torna um desafio quase impossível.

Antes do mais, porque ao que a investigação consegue relatar (devido às escutas telefónicas que apanham os bastidores da negociação) se devem juntar as declarações públicas dos vários intervenientes. Depois, devido às interpretações que estes principais intervenientes fazem do que está em causa e sobre qual era, afinal, o verdadeiro objectivo: se uma decisão puramente empresarial ou se uma compra motivada por factores políticos. O relato que se segue é precisamente a montagem possível desse filme - o mais possível sem interpretações, para que cada um possa tirar as suas conclusões. O DN aponta, isso sim, as possíveis contradições entre os vários factos (públicos e privados), que agora se podem juntar.

Tudo começa a 28 de Maio do ano passado. Paulo Penedos, ex- -assessor jurídico da PT, conta ao telefone a um tal Américo que "Zeinal já arranjou maneira de, não dizendo não ao Sócrates, fazer a operação em termos que ele nunca aparece". Ambos explicam - nas escutas agora conhecidas - que a eventual compra da TVI passaria por "uns fundos para Londres". A referência a Sócrates indicia que, de facto, o primeiro-ministro, poderia estar, já naquela data, a par do negócio.

A ideia adensa-se, aliás, a 19 de Junho: Rui Pedro Soares, ex-administrador da PT, conta a Paulo Penedos que "vai jantar com o 1.º" para lhe indicar a data de inauguração de um call center em Santo Tirso (a inauguração ocorreu no início de Setembro).

Segundo os resumos que a PJ fez, no dia seguinte, os dois interlocutores voltam a falar, sendo que Rui Pedro Soares revela que o "chefe lhe pediu para ir para lá três meses. O chefe diz que é tudo ou nada, não pode ficar com a fama sem ficar com o proveito". A dúvida é: quem é o "chefe"? José Sócrates ou, por exemplo, Zeinal Bava, presidente da comissão executiva da PT, que Rui Pedro Soares integrava?

Tudo se precipita a 23 de Junho, data em que o diário i faz a manchete com o título: "Portugal Telecom vai ter 30% da TVI". O jornal explica que um consórcio liderado pela PT , e do qual faria parte também a Ongoing e a Controlinveste, se preparava para adquirir 30% da Media Capital, empresa detentora do canal dirigido por Eduardo Moniz, aos espanhóis da Prisa.

A administração da Portugal Telecom mantém-se em silêncio durante o dia, mas nessa noite às 21.11, emite um comunicado para a CMVM onde confirma terem existido contactos entre o grupo de telecomunicações português e a Prisa para a aquisição de uma fatia da Media Capital. Mas assegura que "não foi celebrado qualquer acordo".

No mesmo dia, o Diário Económico publica a notícia sobre o interesse da operadora espanhola de telecomunicações, Telefónica, em entrar no capital e na gestão da Prisa, a empresa que controlava a Media Capital. Apesar de a direcção do Diário Económico ter rejeitado que a notícia sobre o interesse da Telefónica tenha sido "plantada", há uma escuta entre José e Paulo Penedos (23 de Junho), na qual o filho diz ao pai que "aquilo é uma cortina de fumo, para dar a ideia que há muitos interessados e que se trata de algo com mero interesse comercial".

Um minuto antes da uma da manhã do dia 24 de Junho, Rui Pedro Soares e Paulo Penedos voltam a falar ao telefone. Segundo o resumo da Polícia Judiciária de Aveiro, "Rui Pedro refere que disse ao Sócrates que tem noção que andam nisto há dez meses e que só nos últimos dias é que...". Paulo Penedos parece concordar: "Diz que é verdade, mas enquanto esteve com pessoas da confiança dele, directa ou indirectamente, nada se soube." Uma vez mais, as conversas entre ambos parecem indiciar o conhecimento que o primeiro- -ministro tinha sobre o andamento do negócio.

Só que, a 24 de Junho, pela manhã, José Sócrates garante, precisamente, o contrário no Parlamento. Questionado pelo CDS, respondeu que não foi "informado nem deu qualquer orientação à PT". Aos jornalistas reforçou: "Nada sei disso, porque são negócios privados. Não estou sequer informado disso."

Neste mesmo dia, Rui Pedro Soares e Paulo Penedos falam ao telefone às nove da manhã. O primeiro volta a dizer que "isto dura há dez meses", só que "agora" os espanhóis baixaram o preço em 40%.

É já depois de José Sócrates ter garantido que, afinal, nada sabia, que perto das 15.00 de 24 de Junho, Rui Pedro Soares conta a Paulo Penedos que as rádios da Media Capital (Comercial e o Rádio Clube Português) "vão ser compradas pela Ongoing e pelo genro do Cavaco", Luís Montez. "É o preço da paz e que esse cala-se logo", de acordo com o resumo feito pela judiciária.

No mesmo dia (num verdadeiro turbilhão e declarações públicas e conversas ao telefone), Armando Vara e Lopes Barreira (ambos arguidos no processo de Aveiro) comentam as declarações do primeiro-ministro: Vara diz que já ouviu Manuela Ferreira Leite a dizer que Sócrates mentiu quando afirmou não saber do negócio. Lopes Barreira "diz que o Sócrates tem matéria, não se dizia uma coisa dessas". Armando Vara concorda, dizendo que "ninguém acredita que não soubesse", acrescentando que foi "um erro trágico".

Na quinta-feira, 25 de Junho, de manhã, o Presidente da República vem a público dizer que os responsáveis da Portugal Telecom devem prestar esclarecimentos aos portugueses sobre os motivos que levaram a empresa a querer comprara 30% da Media Capital por "uma questão de transparência. "Face às dúvidas fortes que neste momento estão instaladas na sociedade portuguesa, é importante que os responsáveis da empresa de telecomunicações expliquem aos portugueses o que está a acontecer entre a PT e TVI. É uma questão de transparência", afirmou à margem de uma visita ao Avepark, em Caldas das Taipas.

Referindo que não fazia normalmente declarações públicas sobre negócios de empresas, o Presidente da República entendeu que, no caso, deveria "abrir uma excepção, pela natureza do sector que está em causa e pela importância nacional da empresa de telecomunicações".

Cavaco Silva sublinhou ainda, nas suas declarações, que já tinha dito anteriormente que "uma das lições mais importantes que se deviam retirar desta crise económica e financeira que se vive é que deve existir transparência e ética nos negócios".

Por seu lado, Mário Lino, então ministro das Obras Públicas Transportes e Comunicações, que tinha a tutela da PT, em entrevista à SIC, garante não ter sido consultado sobre o negócio pela administração da Portugal Telecom. E garantiu que ainda não havia qualquer decisão relativamente à aquisição, porque se tratava de "uma matéria que nem foi discutida em conselho de administração da empresa".

Do lado do Governo o assunto merece ainda algumas declarações de Silva Pereira, ministro da Presidência, na habitual conferência de imprensa que ocorre às quintas-feiras, após a reunião de Conselho de Ministros. Nesse dia, Silva Pereira afirma "o Governo vê com muito bons olhos toda a transparência no que diz respeito aos negócios na comunicação social". E acrescenta: "Não há muito tempo o Governo apresentou no Parlamento uma proposta de lei visando exactamente combater a concentração na comunicação social e assegurar as regras de transparência sobre coisas tão importantes como saber efectivamente quem são efectivamente os accionistas da comunicação social."

O ministro da Presidência reagia, assim, às declarações do Presidente da República nessa manhã. Aliás, Silva Pereira frisou que a mensagem de Cavaco Silva nesse dia era "dirigida expressamente à administração da PT e não ao Governo, nem o Governo poderia dar explicações relativamente a informações que não possui".

Nesse mesmo dia, Henrique Granadeiro, o presidente do Conselho de Administração da PT, diz à Lusa que não informou o Estado sobre o eventual interesse da empresa na compra da Media Capital e garante que também não recebeu instruções do Executivo sobre o negócio. O gestor afirma: "Não propus nem informei, nem dei conhecimento a nenhum membro do Governo, nem pessoalmente, nem por escrito, nem pelo telefone, de qualquer iniciativa da PT na Media Capital."

Henrique Granadeiro relembrou ainda que "o negócio só pode ser feito em conselho de administração especialmente convocado para o efeito."

À noite, o presidente da comissão executiva da Portugal Telecom, Zeinal Bava, vai a à RTP e, na Grande Entrevista com Judite de Sousa, afirma que não discutiu o negócio "no conselho de administração de forma formal". E assegura que qualquer sugestão de instrumentalização da PT pela parte do Executivo de José Sócrates "é um insulto". O gestor salienta que "a comissão executiva é o primeiro fórum em que o assunto deve ser discutido".

Este é também o dia em que o presidente do conselho de administração da PT, Henrique Granadeiro, diz (agora) que informou o Governo sobre o negócio. Nas declarações mais recentes, o gestor explica ter-se enganado quando referiu a data de 23, como o dia em que tinha falado com José Sócrates sobre o assunto. Isto já depois de terem sido publicadas pelo Sol algumas das escutas referentes ao processo "Face Oculta".

Regressando aos bastidores, a 25 de Junho surge a inflexão no discurso nas conversas telefónicas. Depois de algumas conversas em que fica a ideia de que José Sócrates tinha conhecimento do negócio, eis que - noutra escuta telefónica - Rui Pedro Soares afirma a Paulo Penedos que deveria "ter tido a cautela de falar com o Sócrates". "Não falei e o gajo não quer o negócio. Era isto que eu temia. Acho que o Henrique não falou com ele, o Zeinal não falou com ele...eh pá...agora ele está todo fodido." Paulo Penedos pergunta: "Mas não contigo?" Soares responde: "Eu nunca imaginei que ninguém tivesse falado com o gajo sobre isto."Esta escuta acabou por ser decisiva para o procurador-geral, Pinto Monteiro, arquivar as suspeitas sobre o envolvimento do poder político na compra da TVI.

No dia seguinte, 26 de Junho, José Sócrates faz a declaração solene no Parlamento: "O Governo decidiu falar com a administração da PT para lhe comunicar que nós nos oporemos a que este negócio possa ser feito", fazendo uso da golden share que o Estado detém na empresa".

Apesar do anúncio do primeiro-ministro feito durante a manhã, às 20.32, Paulo Penedos e Rui Pedro Soares ainda discutem a possibilidade de o negócio avançar. "Rui liga a Paulo Penedos e diz-lhe que vão ter que se reunir para decidir se avançam ou não com o negócio, que o Zeinal está radicalizado e diz que não sabe por que é que não há-se avançar com o negócio."

Depois de, em conversas anteriores, Rui Pedro Soares ter sempre dito que o negócio entre PT e Prisa se arrastava há dez meses, o ex-administrador da PT volta a introduzir um dado novo. Paulo Penedos via na SIC Notícias a primeira página do semanário Expresso do dia seguinte, que afirmava que o Governo sabia do negócio desde Janeiro (de 2009). "Rui Pedro responde que não faz ideia pois para eles começou há três semanas... três, quatro semanas."

De acordo com a notícia do Expresso daquele dia, "o Governo acompanhou todo o processo de venda de parte da Media Capital, a empresa dona da TVI pelos espanhóis da Prisa". Segundo o semanário, desde Janeiro de 2009 que a hipótese de a PT entrar naquela empresa, era defendida pelo Executivo de José Sócrates, podendo o negócio ser feito directamente ou via Espanha, onde a Prisa viria a ter uma alteração accionista.

Ainda de acordo com a notícia, não só Socrates estava a par das negociações, como também o seu homólogo espanhol Zapatero. Mas a polémica que se gerou em torno do negócio, depois de este ter sido revelado na imprensa, impediu a sua concretização.

O caldo entornou de vez. No sábado, 27 de Junho, Rui Pedro Soares e Paulo Penedos teorizam sobre o que correu mal. O ex-administrador até chega a pedir para Penedos arranjar um papel e uma caneta. Vai-lhe contar "a cilada que Moniz fez". E passa a descrição: José Eduardo Moniz fez uma abordagem à PT para esta comprar a TVI. Ele, segundo Rui Pedro Soares, está desgastado e pretende sair. "Ele está de acordo, quer sair, decidimos em Maio que a mulher dele [Manuela Moura Guedes] sai do ecrã a 30 de Junho e que ela passava para o núcleo de formação de programas", continua o ex-administrador. Os pormenores sucedem-se até à conclusão: "O Moniz nunca esteve disponível para sair e arranjou esta estrangeirinha para ver se nós caíamos nisto. Os tipos da Prisa [dona da TVI] foram instrumentalizados pelo Moniz que, de certeza, passou informações pelo menos à Manuela Ferreira Leite."

E mais uma revelação de Rui Pedro Soares a Paulo Penedos: "O seu e mail do Yahoo, que sempre usou, foi destruído há quatro ou cinco dias atrás e agora sabe porquê. Foi desse e-mail que ele mandou para o Polanco o therm sheet [memorando de entendimento]".

Enquanto nos bastidores se falava assim, a polémica prosseguia, com Granadeiro, a 30 de Junho, a criticar ao i as afirmações feita pela líder do PSD Manuela Ferreira Leite. Logo a 24 de Junho numa entrevista à SIC, Ferreira Leite tinha dito que a compra de 30% da Media Capital pela PT era uma "questão altamente preocupante". E a 25 de Junho, à saída da reunião do seu grupo parlamentar, já depois de Cavaco Silva ter falado sobre o assunto, a líder dos sociais-democratas voltou a questionara como é que o Governo poderia desconhecer a intenção da PT em fazer aquela aquisição, quando o negócio já tinha sido comunicado à CMVM, reagindo assim "ao nada sei" de José Sócrates no dia 24.

Além disso, Ferreira Leite manifestou também preocupação pelo facto deste negócio trazer o risco de o Governo, através da PT, poder intervir na autonomia editorial de de um grupo de comunicação social privado.

Na entrevista ao i, Granadeiro mostra-se surpreendido com as afirmações da líder social-democrata e diz que Ferreira Leite já deve ter esquecido "as tentativas de intervenção do Governo PSD na Lusomundo Media, que levaram à minha demissão".

Perante estas declarações do chairman da PT, Rui Pedro Soares e Paulo Penedos manifestam, ao telefone, "dúvidas de que a fuga tenha saído do Henrique". Ambos conversam sobre um eventual acordo que o PSD liderado por Manuela Ferreira Leite estaria disposto a dar ao negócio. Uma posição que terá sido acordada entre o partido e "os Ongoing". Rui Pedro Soares desabafou: "Alguém, desastradamente, andou a falar com o PSD para este também estar de acordo e, em vez de conseguir o tal acordo, mandou foi enrolar o negócio e foi traído." Paulo Penedos acrescentou mais um dado, admitindo que Ferreira Leite "até podia estar de acordo, mas reuniu o staff mais directo e devem ter-lhe dito que ela não podia estar de acordo".

O tema José Eduardo Moniz regressa às conversas entre Rui Pedro Soares e Paulo Penedos a 7 de Julho de 2009. "Rui Pedro diz ao Paulo Penedos que já está confirmado quem andou a fazer jogo triplo...foi o Moniz, porque também foi ele, ao mesmo tempo que estava a negociar connosco e a dizer aos espanhóis que queria sair, também foi ele que andava a dizer para a Presidência da República que o queriam por fora. Já suspeitavam disso, agora têm a certeza. Ele (Moniz) já tinha feito o mesmo à Zon, com esta só um maluco lhe dá emprego em Portugal" - segundo consta do resumo que a PJ fez da conversa entre os dois.

A 1 de Agosto, o Expresso revela que a Ongoing, uma das accionistas de referência da Portugal Telecom e proprietária do Diário Económico, se prepara para comprar uma fatia da Media Capital. A Ongoing é também accionista da Impresa, dona do jornal Expresso e da Revista Visão. O semanário revela ainda que as negociações começaram a partir do momento em que o Governo se opôs à concretização do negócio da PT.

Segundo o jornal, Eduardo Moniz, director da TVI, deverá saltar para a administração, tal como estava previsto caso a PT comprasse a Media Capital.

A 5 de Agosto, por fim, José Eduardo Moniz deixa a direcção da TVI sem que tenha havido protestos da oposição sobre a sua saída. No início de Setembro é contratado pela Ongoing, a empresa que no final de Setembro anuncia que quer comprar mais de 29% da MediaCapital, a detentora da TVI.

Mais tarde, a Autoridade da Concorrência impõe condições para a concretização do negócio. Uma delas é que a Ongoing venda a participação que detém na Impresa. É isso mesmo que está a fazer neste momento.

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