Política
25 junho 2023 às 22h01

"A dimensão marítima é um fator fundamental para explicar a longevidade da aliança luso-britânica"

O diretor do Instituto de Estudos Políticos da Universidade Católica, João Carlos Espada, na antecipação do Estoril Political Forum, fala ao DN da importância das alianças e do impacto daquela que é a mais antiga do mundo para a entrada de Portugal na NATO.

O Estoril Political Forum, que é organizado pelo Instituto de Estudos Políticos e terá lugar entre hoje e quarta-feira, tem como tema "reconstruir o consenso democrático e celebrar os 650 anos da aliança luso-britânica". Estamos a falar da aliança mais antiga do mundo. Como é que esta aliança sobreviveu a tantos séculos e mudanças geopolíticas?
Esse é um dos temas que vai ser discutido no nosso encontro, não me compete a mim dar uma resposta, no sentido em que não temos uma. É uma coisa que gostava de sublinhar. Nós não temos uma doutrina oficial neste programa. Ao longo dos 30 anos nunca houve. Pelo contrário sempre houve a preocupação de não haver. O que há são três compromissos que nos definem. Em primeiro lugar a defesa da democracia liberal e da economia de mercado. Em segundo lugar, a defesa da aliança euro-atlântica. A defesa da União Europeia sempre em ligação atlântica aos EUA. O conceito euro-atlântico é fundamental para defender a democracia liberal. Emergiu depois da II Guerra e foi para dar expressão à aliança das democracias.

E o terceiro?
O terceiro é o compromisso com a ideia de universidade, que emergiu em Atenas clássica e teve uma longa evolução. Um diálogo pluralista, não é de uma só voz, na busca da verdade, do bem e do belo, como características fundamentais desta ideia de universidade. Nestes três compromissos, o pluralismo está sempre presente. A democracia liberal, por definição, assenta na ideia de liberdade e pluralismo. A aliança atlântica é a que dá corpo em defesa desses valores. Mas sobretudo a ideia de liberdade e pluralismo ocidental tem uma das principais raízes na criação da universidade. Que não é o lugar de propaganda, de doutrinas oficiais, politicamente corretas ou incorretas.

Entendo as bases da realização do fórum, mas perguntava-lhe a sua opinião...
Eu sou muito anglófilo, sou considerado um bocado suspeito. Tenho uma condecoração da rainha Isabel II, não me compete fazer propaganda num tema em que as pessoas sabem que tenho muito empenho. E não sou historiador. Mas a aliança é a mais antiga do mundo, ainda em vigor, e é de facto extraordinário como vingou durante 650 anos. Dois países independentes, com uma grande comunhão em torno do mar, gostamos de assinalar essa dimensão marítima. Karl Popper, o grande autor de A Sociedade Aberta e os seus Inimigos, considerado uma espécie de segunda bíblia das democracias ocidentais - Bertrand Russell chamou-lhe mesmo a bíblia da democracia ocidental - ele faz uma grande defesa de Atenas e uma crítica quase feroz a Esparta, ao coletivismo, autoritarismo de Esparta, defesa da liberdade e pluralismo de Atenas. E ele associa a liberdade ateniense ao mar e ao comércio marítimo. Popper sublinha a importância do comércio e do mar tanto para a gradual emergência de uma sociedade aberta a partir da tradição de sociedades fechadas. Tem a ver com o facto de o comércio colocar em contacto povos diferentes, culturas diferentes, e ao fazer esse contacto, quebra o preconceito de que os pontos de vistas de cada sociedade são os únicos possíveis, verdadeiros, corretos. As sociedades que estão isoladas nos continentes não têm esse contacto com outras culturas, portanto é mais fácil alimentar o dogma que é assim e não pode ser de outra maneira. A partir do momento em que há um comércio marítimo com outras culturas há um choque de culturas, mas não do ponto de vista negativo. Há um diálogo e há um autoquestionamento, da nossa cultura e da dos outros.

Essa dimensão marítima pode explicar então a longevidade da aliança anglo-portuguesa?
A dimensão marítima é um fator fundamental para explicar a longevidade desta aliança, com altos e baixos. As pessoas, que são críticas da aliança, costumam falar do ultimato e eu sei que houve ultimato e outros desentendimentos. Mas em 650 anos seria muito estranho se não tivesse havido diferenças e alguns choques. A verdade é que não houve conflitos violentos. Pelo contrário. Houve a sustentabilidade de uma aliança estratégica.

E foi ao abrigo desta aliança que, na II Guerra Mundial, Salazar autorizou os britânicos a usarem uma base nos Açores...
Salazar inicialmente não queria. E Churchill citou a aliança. Salazar não queria, porque ele era muito antiamericano, nem se podia beber Coca-Cola, a América era o capitalismo. Mas era respeitador da aliança com Inglaterra e tinha respeito pela cultura inglesa. Martin Gilbert, que foi o biógrafo oficial de Churchill, numa conversa connosco há uns anos explicou que o Churchill terá enviado um emissário no início da guerra a Lisboa. E terá sido ele que, citando a aliança, não queria pedir a Portugal que entrasse na guerra diretamente, mas achava importante para Inglaterra que Portugal declarasse a neutralidade e, sobretudo, conseguisse convencer Franco a ficar neutro. Os nazis tinham apoiado Franco na guerra civil. Na sequência desse emissário ter vindo, Salazar marca pouco depois a cimeira com Franco e dessa cimeira sai a declaração de neutralidade dos dois países.

Mas foi a presença dos ingleses que acabou por abrir a porta aos norte-americanos da base das Lajes e é essa presença norte-americana que justifica, depois, que Portugal acabe por ser um dos países fundadores da NATO.
É muito curioso, de facto, porque Portugal não era uma democracia, mas foi chamado a participar na fundação da NATO. Churchill, que já não era primeiro-ministro porque ganhou a guerra e depois perdeu as eleições... ele que tinha sido o líder incontestável da guerra. Mas Churchill foi a favor de que Portugal fizesse parte da NATO.

A NATO centra-se na ideia de dissuasão, mas na realidade nunca foi posta em prática. O artigo 5, de defesa mútua, só foi usado uma vez após os ataques do 11 de Setembro de 2001 nos EUA.
O artigo 5 é fundamental e é um elemento de proteção mútua e tem um papel dissuasor em relação a ameaça de terceiros. Daí que, hoje em dia, a Ucrânia queira entrar, porque foi alvo de uma invasão brutal pela Rússia. É muito importante para a Finlândia, que já entrou, e a Suécia, que também quer entrar. O artigo 5 é símbolo de proteção e segurança para os países que estão mais suscetíveis de ataques. E foi muito importante durante a Guerra Fria. A União Soviética nunca se atreveu a atacar um dos países membros da NATO e no entanto ocupou e manteve ocupados os países da Europa Central e de Leste.

Mas com o fim do Pacto de Varsóvia e a queda da União Soviética, finda a ameaça comunista, não poderia ter sido um momento para apostar na paz e na dissolução da aliança militar? Em vez disso encontramos um alargamento cada vez mais a Leste...
A NATO foi também criada para defender as democracias liberais que tinham enfrentado não só o comunismo, mas também o nazismo e o fascismo. A emergência da NATO é para a defesa da democracia ocidental. Naquele momento a ameaça era o comunismo, mas também tinha sido, é importante não esquecer, o nazismo e o fascismo. É importante lembrar que em 1939, quando a guerra começa, é porque a Polónia é invadida pelos nazis e pelos comunistas. Na sequência do pacto Molotov-Ribbentrop. Foi um acordo apresentado ao mundo como um acordo de paz e colaboração entre União Soviética e a Alemanha nazi. E afinal o que queriam era invadir a Polónia. Falámos do artigo 5. O que acontecia nessa altura era que a Polónia tinha com a França e com a Inglaterra um tratado em que tinha uma espécie de artigo 5 da NATO. Qualquer um dos países que fosse atacado, os outros consideravam um ataque a si próprio. E quando a França e a Inglaterra declaram guerra foi ao abrigo desse tratado.

Voltando à ideia da queda da União Soviética e uma dissolução da NATO. Toda a experiência anterior mostrava o sucesso extraordinário da NATO. Sem nunca disparar um tiro, garantiu as fronteiras, garantiu a democracia, deu estabilidade e segurança perante um inimigo que, nos anos 1960 e 1970, dizia-se que ia ultrapassar os EUA, o Ocidente capitalista. Mas, a seguir à queda do Muro de Berlim, todos os países que estavam sob a ocupação soviética queriam ser democracias. E, por isso, a grande ambição deles era a adesão à Comunidade Europeia e à NATO. Não foi um plano congeminado em Washington... era um movimento de baixo, das pessoas, que queriam.

A questão é que falou da Polónia, que tinha aquele acordo bilateral e resultou. Com alargamentos sucessivos, a NATO não corre o risco de implosão, de se tornar demasiado grande?
Até agora tem funcionado lindamente e os recém-chegados têm tido particular empenho em dar-se bem e em conviver tranquilamente porque sabem o valor da proteção acrescida. Este é um acordo bilateral entre todos.

E como é que esse acordo se conjuga com outros que são feitos? Estou a pensar no recente AUKUS, entre EUA, Reino Unido e Austrália...
Esse pacto foi muito discutido e criticado, por ser um pacto marítimo, de três potências de língua inglesa, com uma fortíssima tradição democrática. A Austrália é uma grande democracia ancestral, grande tradição pluralista. Eu, pessoalmente, achei o pacto muito importante. E, para dizer a verdade, não vejo conflito entre esse pacto e a NATO. Este pacto é sobretudo por causa do Pacífico onde cresce a ameaça chinesa a cada dia. A ameaça, a arrogância e o desafio da China.

Já depois da invasão da Ucrânia, a NATO classificou a China como "desafio sistémico". É importante esta viragem a Oriente?
Eu penso que sim, mas o futuro da NATO e a questão da China serão também discutidas no fórum. No âmbito dos valores do Atlântico, existe a perceção que a China está a emergir como uma potência... há uns 20 anos acreditávamos que o comércio, a atividade económica, uma certa abertura chinesa ao mercado, embora sempre muito condicionada, bom, nós, ocidente, com boa vontade, achámos que seriam fatores importantes para uma abertura gradual do sistema político. Baseado na ideia ancestral de que o comércio favorece o pluralismo, a liberdade. Acreditámos nisso e acreditamos bem. Houve sinais de abertura com Deng Xiaping. Mas esses sinais têm estado a ser revertidos por Xi Jinping.

susana.f.salvador@dn.pt