Faranaz Keshavjee acabou a entrevista ao DN com uma profissão de fé: "Não tenho medo de usar as palavras que uso, não tenho receio nenhum, não sinto pudor. As coisas têm de ser chamadas pelos nomes que estou a chamar." Os tempos não estão para meias-tintas. A investigadora é um nome de referência no debate público em Portugal sobre o Islão e comunidades muçulmanas. É hoje investigadora no Centro de Estudos Internacionais do ISCTE.
Há uma retórica de "nós" e "eles" que Donald Trump tem acicatado de modo veemente, em que "eles" só podem cá estar se aceitarem os nossos "valores" e leis.
Nunca acreditei que alguém que defende a ideologia que ele defende viesse algum dia a tomar conta de um Estado, de um país tão grande e tão poderoso, como os EUA. Depois de tomar posse, também não acreditei que fosse possível que se tomassem medidas como as que se tomaram e que se falasse como se fala, sobre tudo o que tenha que ver com o outro. Esse outro é uma construção. Quem é que somos "nós", ainda não percebi onde é que Trump define o "nós", embora se comece a perceber que é o homem branco.
Quando falamos dos nossos valores, não estamos a falar à toa, estamos a falar de coisas que foram sendo conquistadas, fruto de muita guerra e conflitos, que se impuseram para bem da humanidade. Quando se ouve depois este discurso reverso, ficamos a pensar o que é que se está a passar.
A forma de olhar para isto tudo não pode ser outra se não olhar e ver seres humanos. Nesse sentido, sou muito arendtiana, como Hannah Arendt olhou para Eichmann e viu um ser humano, da mesma forma que olho para os terroristas e vejo seres humanos. Até hoje, ouvimos esta expressão, "nós não negociamos com terroristas". Ai negociamos, negociamos. O que Trump está a fazer neste momento é iniciar toda uma campanha terrorista. Isto é um terror, estamos todos aterrorizados com o que está a acontecer. É saber que hoje tenho amigos, que saíram dos EUA e não conseguem voltar, por um determinado conjunto de medidas assentes na ideia de que aquele outro é criminoso, apenas porque tem uma identidade religiosa, uma pertença particular geográfica ou um determinado tom de pele.
É uma islamofobia de Estado?
É uma islamofobia de Estado. Mas quando olho para isto, só posso pensar que há ali um ser humano, da mesma maneira que Hannah Arendt viu em Eichmann a banalidade do mal e disse que somos todos potencialmente maus, assim como podemos ser bons, olho e digo que tem que haver alguma coisa aqui que tenha que ser negociada. O que sou crítica é em relação a esta homogeneização do mundo: nós não somos todos iguais. Não existe um grupo chamado "os muçulmanos". Sim, há os muçulmanos que seguem o Islão, mas não somos todos iguais, aliás como a própria natureza humana, somos todos diferentes. As comunidades muçulmanas são todas elas diversas.
Com este tipo de discurso para a hegemonia, a primeira tendência que se tem é afirmarmo-nos "nós os muçulmanos" - mas nós quem? Não me identifico com os radicalistas, os salafis, os sauditas e determinadas interpretações do Islão. Não sou parte de um grupo homogéneo e quando se põe toda a gente no mesmo saco, o outro lado tem a sensação que faz parte desse saco. E isto é culpa também dos muçulmanos, porque os próprios muçulmanos não fazem um esforço para se demarcar disto tudo.
Não podemos impor nada, temos que negociar porque os terroristas de hoje são muitas vezes os chefes de Estado de amanhã. Temos esses casos na nossa sociedade, que se quiseram impor e fazer revolução nos seus próprios países, matando, e agora são líderes de Estado, como o Sinn Fein e em Timor-Leste. Não estou a pôr juízos de valor, se foi bom se foi mau, ser justo ou injusto.
"Vamos destruir isto que está construído". Não, vamos construir com quem já lá está. E essa visão de construir com quem já lá está, parte muito da minha convicção de que há aqui um desconhecimento profundo e um medo. Quando vejo Donald Trump a falar, vejo um miúdo mimado, cheio de dinheiro, com medo.
E que tem uma linguagem infantilizada.
E tem essa linguagem. Se nos lembrarmos bem, em certos debates ele fazia um gesto, como se fosse um puto a dizer, "eh pá, tu não sabes brincar o jogo e na minha equipa mando eu, portanto, não fazes como eu, pum, pum" (e com os dedos simula o gesto de uma pistola a disparar). Isto é um miúdo mimado, que ficou muito rico e que ficou chefe de um Estado imenso, poderosíssimo, que tem influência na ordem mundial.
Na retórica de Donald Trump, não há espaço para a tolerância, para o outro, para a diferença.
Mas também não há nos radicalistas islâmicos.
Estão bem uns para os outros?
Temos radicais de um lado e do outro. É isto que queremos? É este tipo de sociedade que nós queremos? Temos de construir alguma coisa a partir destas diferenças todas. Eu faço parte de uma corrente religiosa, cujo líder espiritual disse há muito pouco tempo que estamos a viver numa realidade particular, que temos que aprender a construir a partir da diferença. O cosmopolitismo não é aceitarmos que somos todos diferentes, só, é saber construir a partir da diferença, mesmo que eu não goste do outro.
Quem é que pode fazer mais diferença? As comunidades muçulmanas que rejeitam o terrorismo e a radicalização? Ou do lado da sociedade americana?
Não acredito que seja "ou/ou". É "e/e". Temos de construir uns com os outros. Metade da população americana votou a favor desta administração e há outra metade que não votou a favor de Trump. Essa outra metade não tem que ser negligenciada. Também não se pode impor. Terá que haver aqui algum tipo de negociação e a intransigência é algo que não vai ajudar neste processo. Não podemos com uma pedra atirar mais pedras. Assim não vamos a lado nenhum, vamos destruir tudo. A minha perspetiva é muito esta: construir a partir desta diferença. Sei que é difícil, parece até utópica, mas não é inexequível, isto faz-se.
Voltando à pobreza e à miséria. Não estou a falar que isto seja geral porque quem traz o armamento e paga para armar, não é gente que vem do nada, é alguém que é subsidiado por poderes que têm muito dinheiro, é importante contar as histórias a sério, ir à causa das coisas, quem é que paga a esta gente, de onde vem o dinheiro, de onde vem tanto armamento.
Isto é perigoso. Neste momento temos um país que é os EUA que é poderosíssimo do ponto de vista do dinheiro e do armamento. Há quem diga, "ah mas ele não matou ninguém ainda". Eu não sei se isto é matar, mas deixar pessoas nas fronteiras a morrer de frio e fome... É negligenciar a vida.
A Europa tem um grande peso na consciência nesta matéria.
Sim. E há uma coisa grave nisto tudo e que me preocupa. Dentro da Europa e dentro da sociedade portuguesa, pessoas com alguma proeminência social, religiosa e política, estão a acompanhar muito bem a ideologia de Donald Trump. Isto é preocupante. Como seres pensantes, temos que observar, pensar, questionar e encontrar soluções. E seguramente este caminho não é o mais certo. A história já nos deu exemplos de coisas dramáticas que aconteceram, de destruição total, de desumanidade profunda e nós não podemos deixar que a história se repita. Mais a mais com o potencial que têm os EUA.
Esta retórica beligerante dos EUA não é nova, Bush falou no eixo do mal. Mas com Trump parece apenas existir a retórica sem algo substantivo?
Acho que está por detrás disto tudo é um homem cheio de medo, um homem e um grupo de gente que tem imenso medo. Há dias, Trump dizia que temos que afastar os indivíduos que têm potenciais comportamentos radicais. Ele saberá o que é que quer dizer radical? Ele próprio é radical. Mas o religioso está em todo o lado: os discursos atuais são muito pró-cristãos. Uma das ordens de Trump teve que ver com a reposição da religião na esfera pública, mas não é qualquer religião, ele quer o cristianismo e não sei que versão do cristianismo. Até a pôr em causa o próprio conceito republicano de laicidade.
Ele tem uma plataforma ótima para atuar que é a tal questão da miséria e da falta de esperança. A população que o elege é quem está descontente com a ordem social e económica, sobretudo com a económica. Tem tudo a ver com dinheiro. Dinheiro e religião são ingredientes fantásticos para fazer coisas extraordinárias.
Legitima-se o discurso de que as religiões são um mal para o mundo?
As religiões não são um mal para o mundo, os religiosos é que são. É porque eu tenho um pensamento religioso que acho que posso construir com o outro. Não direi que quem não é religioso não pense como eu - e não digo que penso da melhor maneira. Mas, para mim, tem influência um pensamento originalmente religioso.
Basta pensar no versículo corânico que diz: "Oh Humanidade! Eu vos criei de uma Alma apenas, uma, e daí fiz com que existissem muitos homens e muitas mulheres e fiz com que todos fossem muito diferentes uns dos outros, porque se Deus quisesse ter-vos-ia feito todos iguais, para que na vossa conduta moral vos excedesseis uns aos outros no bem, no caminho da ética." Quando leio isto, é uma só humanidade, não são várias. Somos todos um só e daí somos todos diferentes e somos todos diferentes porque nos temos que nos conhecermos uns aos outros.
Essas vozes existem, mas acabam por ter pouco espaço mediático quando acontecem estes atentados?
É. Mas temos de pensar que tipo de informação estamos a dar e, por isso, é muito importante pensar naquele jargão que se usa agora das sociedade pós-factos.
Há uma visão muito homogénea e hegemónica que empurra para uma identidade comum. Se eu puser toda a gente na mesma caixa, ajuda-me a organizar o mundo, simplifica de forma simplista e errada. E esse é que é o problema: encontro alguém que me diz, "tu não és bem muçulmana", sou muçulmana, não sei se sou bem ou mal, mas sou muçulmana. Mas "tu és islamofóbica". Não sou, sou muçulmana, mas tenho uma perspetiva sobre a vida. Isso significa que há coisas que repudio. Sou portuguesa acima de tudo, sou europeia, sou moçambicana, tenho uma pertença, uma identidade de que todas estas componentes fazem parte. Eu vivo de acordo com a lei do meu país e se quiser uma introdução de diferenças na minha lei, trabalho para chegar junto dos decisores e olhar com eles sobre as leis - e aí trabalho em conjunto e não imponho. Não são as religiões que vêm estragar as coisas no mundo, são os religiosos que interpretam mal as religiões.
Uma administração Trump é o pior dos cenários para este mundo?
Para mim, é. Sobretudo porque desaponta e desilude profundamente.
Os ataques não são apenas contra os muçulmanos, são dirigidos contra mexicanos, latinos...
Aquele outro que ele constrói, que deve ser banido, já não tem só cor, não tem só religião, não tem só género. Ele é também um humanofóbico, é um indivíduo que tem um problema com a humanidade. Não aceita a homossexualidade, a paridade de género, impõe uma versão da ordem da vida. É todo um conjunto de coisas que ele personifica que é complicado.
Estamos todos a sofrer um abanão imenso, porque percebemos que isto está de facto a acontecer e agora é preciso pensar como é que se faz. Eu não posso impor, mas tenho de negociar. Faz-me pensar: porque é que até hoje não se negociou com ninguém. Não negociamos com terroristas, mas está aqui um terrorista. Não vamos negociar com ele?
É uma palavra violenta.
É. Mas ela tem de ser usada da forma como ela se entende: ela é violenta e traz violência. Ou trabalhamos com ela e sobre ela e ajudamos a minimizar os danos que isto possa ter ou então não estamos a construir nada, estamos a destruir. Se não pegarmos nas coisas com os nomes que elas tê, nós vamos estar a perpetuar, a permitir que se perpetue alguma coisa que é muito negativa: é muito feio o que pode acontecer a seguir, pode ser dramático, para a história da humanidade, para a história da civilização moderna.
Este tremor de terra que estamos a sentir tem muito que ver com todos aqueles que estão descontentes nos estados americanos, que votaram em Trump, inclusivamente muçulmanos, negros, é gente que está descontente com a ordem económica e social.
Que pode ter réplicas na Europa.
Com certeza. Inclusivamente temos clivagens no mundo muçulmano. Os muçulmanos não são todos os mesmos. Temos muçulmanos que defendem as políticas de Trump porque estão cansados dos radicais, porque não se faz nada com os radicais, e porque é que não se faz nada com os radicais? Porque os radicais estão também a servir alguns interesses europeus e americanos. E nós estamos fartos deles.
É esse descontentamento que fez mexer o que foi mexido até ao 11 de setembro. E depois as pessoas não estão a querer olhar com olhos de ver. Por isso, não tenho medo de usar as palavras que uso, não tenho receio nenhum, não sinto pudor. As coisas têm de ser chamadas pelos nomes que estou a chamar. Mas nós temos que construir alguma coisa. Bottom line: construir, negociar, unir. Tem que ser isto, temos que trabalhar nesse sentido, mesmo que eu não goste do outro.