12 dezembro 2016 às 00h18

A Turquia tornou-se em 2016 um campo de batalha global

AKP e Erdogan querem uma presidência forte para responder aos diferentes desafios que ameaçam o país. O que pode não bastar.

Abel Coelho de Morais

Mais de 260 pessoas perderam a vida neste ano na Turquia em resultado de ataques terroristas do Estado Islâmico (EI) e de independentistas curdos, o mais recente dos quais atribuído a estes últimos sucedeu na noite de sábado em Istambul, fazendo 38 mortos, a grande maioria agentes das forças de segurança.

A somar às 268 vítimas das ações terroristas, segundo a contagem do Hurriyet ontem divulgada, estão os mais de 300 mortos resultantes da tentativa de golpe militar de 15 de julho, num total próximo de 600. O atentado de Istambul foi reivindicado por um grupo radical curdo.

Em consequência da tentativa de golpe, que as autoridades de Ancara atribuem ao clérigo muçulmano Fethullah Gülen, iniciou-se uma purga nas forças armadas, administração pública e nos setores da educação e da justiça, que prossegue ainda, e levou ao encerramento de editoras, rádios, televisões e periódicos associados ao movimento de Gülen. Só entre os militares já foram afastados 22 085, anunciou no sábado o ministro da Defesa, Fikri Isik.

A resposta ao golpe, muito criticada na Europa e também nos Estados Unidos, com alguns setores a classificá-la como uma deriva autoritária, acabou por adensar um clima político já de si tenso. Uma tensão ampliada pelo projeto de revisão constitucional defendido pelo AKP, partido no governo, e pelo presidente Tayyip Erdogan, visando ampliar e reforçar consideravelmente os poderes deste último.

Reforço do poder presidencial

O AKP e Erdogan argumentam que é a dimensão dos desafios e problemas a justificar a necessidade do reforço dos poderes presidenciais, à semelhança do sistema vigente nos EUA. A principal formação da oposição, o Partido Republicano do Povo (CHP), opõe-se à mudança, considerando que serve apenas a ambição do presidente e que o país caminha para um regime autoritário. Mas o apoio que o AKP conseguiu dos nacionalistas do MHP abre caminho para a concretização do referendo e para a possibilidade de Erdogan permanecer na presidência até 2029. Num Parlamento de 550 lugares, AKP, com 316 deputados, e o MHP, 39, somam 355 votos, mais 25 do que os necessários para a aprovação da revisão. Mas o AKP anunciou que tenciona submeter o novo documento a referendo, obtendo a legitimidade suplementar que resulta da popularidade do presidente.

Com a mudança da Constituição, o atual mandato não é contabilizado e Erdogan poderá apresentar-se a mais dois de cinco anos cada, com as primeiras eleições no novo quadro a sucederem em 2019. Teria assim a possibilidade de deixar uma marca tão ou mais significativa na Turquia do que a deixada pelo fundador da República, Kemal Atatürk.

Considerando a dimensão dos problemas, a tarefa de Erdogan nunca será simples. Por exemplo, na questão curda, depois de ter desencadeado em 2012 um processo negocial com Abdullah Ocalan, líder do Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK), que levou a um cessar das hostilidades iniciadas na primeira metade dos anos 1980, Erdogan, com o agravamento da guerra civil na Síria e o papel preponderante assumido pelas milícias curdas a partir do verão de 2014, mudou de orientação. O risco de controlo curdo sobre partes da Síria e do Sudeste da Turquia leva-o a reativar as operações militares a que a guerrilha responde com a vaga de atentados de que o de ontem foi o mais recente. E a questão curda não vai desaparecer nem a curto nem a médio prazo.

Moscovo, Damasco e Washington

A guerra civil na Síria e a ameaça do EI são uma dupla ameaça para a Turquia. O grupo islamita já demonstrou que continua capaz de atuar no interior do país e causar número suficiente de vítimas em retaliação pelas operações das forças armadas turcas contra alvos seus e, por outro lado, para desestabilizar o regime. Com a sobrevivência política de Bashar al-Assad a parecer garantida no futuro próximo, o projeto de Erdogan de criar uma esfera de influência do islão sunita na região está comprometido. O conflito no país vizinho pode prolongar-se mas é evidente que as forças da oposição a Damasco estão em recuo, como se vê em Aleppo. Não terá sido por acaso que, em julho, Assad declarou que seria naquela cidade que "as expectativas e os sonhos do carniceiro Erdogan serão enterrados". Quase toda a Aleppo está hoje nas mãos das forças de Damasco e dos seus aliados russos e iranianos.

No plano diplomático, a sobrevivência do regime de Assad pode criar novas tensões entre Ancara e Moscovo, apesar das relações que interessa a ambas as capitais manter num bom plano. Esta será mais uma frente de batalha a que o presidente terá de estar atento.

Ainda no plano diplomático, a exigência de Ancara para a repatriação de Fethullah Gülen, que vive exilado nos EUA, pode originar alguma crispação entre Ancara e o aliado americano. Erdogan possui alguma margem de pressão sobre Washington, mas não é ilimitada e pode originar efeito oposto ao pretendido. E um problema mais se os EUA não acederem ao pedido turco.

Após o golpe, Erdogan declarou que este fora "uma dádiva de Deus (...). Deu-nos uma razão para limpar as nossas forças armadas". O seu poder pode ter aumentado, mas a dimensão dos conflitos que tem pela frente cresceu na mesma proporção. A Turquia é, cada vez mais, campo de batalhas que se travam em muitas frentes.

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