Quando começa a ficar calor, todos os caminhos vão dar ao sul. "Resgatar a felicidade recalcada durante onze meses de trabalho. Ir. Libertar o corpo no gozo solar do Algarve." Vera Mantero também vai. Enfia os chinelos, veste o bikini e mostra uma pele demasiado clara. "Como uma banhista fantasma."
Assim começa Pão Rico, o espetáculo que Vera Mantero criou em residência no Algarve e que estreou a 29 de abril, dia da dança, em Loulé, e que é apresentado na Culturgest, em Lisboa sexta-feira e sábado (dias 26 e 27). Esta foi a segunda vez que Vera Mantero foi desafiada pelos encontros DeVir a criar um espetáculo sobre o Algarve. Em 2012 tinham andado pela serra e o resultado, o solo Os Serrenhos do Caldeirão, ainda hoje continua em digressão. Desta vez, os olhares voltaram-se para o litoral. Por exemplo, o coreógrafo Francisco Camacho fez uma Viagem Sentimental a Loulé, o encenador Pedro Penim andou por São Brás de Alportel para criar Antes. Entre as muitas "cidades utópicas, cidades possíveis", a Vera Mantero calhou Quarteira.
A coreógrafa conhecia mal aquela região. Foi à descoberta. "Fui lá meter o nariz, recolher elementos, filmar, falei com várias pessoas", conta. E também fez um trabalho de pesquisa - falou com investigadores da Universidade do Algarve, leu alguns livros sobre a região e sobre "o advento da praia" (por exemplo, As Praias de Portugal, de Ramalho Ortigão) e esta ideia de que tomarmos banhos no mar e apanhar sol na cara é uma coisa boa. "Foi importante para não ter só aquela ideia de devastação, que é o primeiro impacto quanto vemos aqueles prédios. O turismo foi importante para o desenvolvimento da região."
Mas neste processo foram surgindo questões. Como é que uma aldeia piscatória cresce tão rapidamente? Como é que se lida com a invasão dos turistas no verão? "O turismo foi uma mina de ouro para aquela região", diz Vera Mantero. "Claro que houve um deslumbramento e houve decisões erradas, mas também eram outros tempos." Apesar de tudo, ela não está pessimista. O Algarve é também a única região com crescimento demográfico, sublinha. "E há muitas coisas a acontecer ali." Há jovens com vontade de se dedicarem outras atividades, para além do turismo. "Não se pode pôr os ovos todos no mesmo cesto, a economia tem de ser diversificada. As pessoas não podem estar ali todas para servir quem chega, se não isto é muito pobre socialmente." Há preocupações ambientais que já estão a ser tidas em contas. "Só tem de haver vontade política."
No palco, Vera Mantero, única intérprete deste espetáculo, não procura respostas. Apenas reflete sobre o que viu e sentiu naquelas temporadas numa terra onde os barcos de pesca que atracam na doca convivem com os barcos de recreio dos milionários na marina. "Quarteira está ensanduichada por Vilamoura e Vale do Lobo, está ali no meio das duas. E daí é que vem o nome Pão Rico. Ali à volta estão as propriedades mais caras do país." A "banhista fantasma" parece presa entre estes dois mundos. "As bolas de golfe invadiram as redes de pesca."
Pão Rico
De Vera Mantero
Sexta-feira e Sábado, 21.30 - Culturgest, Lisboa
Bilhetes: 15 euro