Intrigas, violência, reis, fadistas (marginais), povo, invejas: O Fado, de José Malhoa, é um quadro - ou melhor dois, duas versões, a de 1909 e a de 1910 -, que completa agora um século. Mas é mais do que isso: é uma história de peripécias. As duas versões são irmãs separadas à nascença e com lutas de paternidade pelo meio, confirmando-se serem ambas autênticas. E pela primeira vez em cem anos vão estar juntas, lado a lado, na exposição O Fado de 1910, que hoje é inaugurada na Sociedade Nacional de Belas Artes, em Lisboa.
A história desta obra de Malhoa é uma síntese da história de Portugal dos últimos cem anos. Socioculturalmente e, com algum exagero, até politicamente, está lá o País cuspido e escarrado. Podia ser um livro. Mas não é ainda um livro - é verdade que Lourenço Pereira Coutinho, historiador e escritor, escreveu em 2005 uma obra sobre o artista em que falava abundantemente desta obra de faces múltiplas. Tal como não é um filme (mas esteve no primeiro filme mudo português, realizado em 1923) ou uma peça de teatro, embora tenha sido explorado dramaturgicamente em peças do tempo da I República. Mas é um fado: o Fado Malhoa que José Galhardo escreveu para Amália celebrizar, e no qual a fadista canta sobre "o mais português dos quadros a óleo", um dos versos de Galhardo (musicados por Francisco Valério e can-tado pela primeira vez pela diva em 1947).
O quadro é isto, mas, objectivamente, é também uma história de intrigas, facadas, violência conjugal, opiniões reais, populares, especializadas e, factualmente, cerca de uma dezena e meia de estudos de José Malhoa e duas telas. Autênticas. Duas faces de uma mesma obra que raras pessoas conseguiram ver juntas.
O empresário Vasco Pereira Coutinho, da família proprietária da peça datada de 1909, é um privilegiado. "Vi-as aquando de uma peritagem no Museu Nacional de Arte Antiga, aqui há uns anos", recorda. A peritagem a que se refere remete para um dos muitos episódios trágico-cómicos desta obra.
Há um punhado de anos, apareceu esta primeira versão do quadro que retrata Amâncio, afamado marginal (ou "fadista", então sinónimo) da Mouraria a quem chamavam "pintor" (e por isso, no bairro, chamavam a Malhoa o "pintor fino"), e Adelaide, mulher de má vida, conhecida por Adelaide da Facada (exibia no rosto uma cicatriz desenhada a navalha). E começaram os comentários desdenhosos, as desconfianças, as invejas. Exames periciais resolveram as dúvidas: não havia só um original, mas dois. A riqueza desta obra emblemática do mestre Malhoa também se mede em quantidade: duas versões, vários estudos.
Este obra foi compreendida pelo fado, o movimento musical. Porque ele próprio, também está cheio de referências incongruentes, a começar nas origens e passando pelo desdém das elites que enfrentou até ser coisa portuguesa candidata a património imaterial da UNESCO.
A obra de Malhoa também começou por ser uma preciosidade da rua até se fazer obra maior - nos primeiros anos de vida, enfrentando a fúria dos críticos por retratar essa coisa menor do fado, a marginalidade, foi reconhecida lá fora. Depois de ter passado pela Argentina e ter sido exibida no Porto, foi aos Estados Unidos a um concurso que assinalava a abertura do canal do Panamá. E ganhou o primeiro prémio entre peças de conceituados artistas internacionais.
Antes, era apenas uma extravagância de um artista que, como se escrevia então, tinha direito a ser excêntrico. E José Malhoa, se era excêntrico, foi sobretudo persistente para concluir esta empreitada. Teve de andar no Governo Civil a meter cunhas para libertar da cela Amâncio, um desordeiro violento, teve de conter o temperamento do "pintor" de Mouraria quando se virava a Adelaide, teve de lhe atender alguns caprichos, sobretudo pudicos. Fazer este quadro foi como subir uma encosta, para Malhoa.
Sem Amâncio por perto, como quando estava preso, por exemplo, Malhoa desnudava os ombros e até um seio a Adelaide; os ciúmes tempestuosos de Amâncio foram levando o artista a subir a alça da camisola a Adelaide; mas, aqui, também o Rei D. Manuel meteu o bedelho, sugerido algumas alterações que compusessem, digamos que dentro de padrões socialmente mais aceites, a cena pintada por José Malhoa.
"Há algumas histórias engraçadas sobre o quadro. A saia da Adelaide era vermelha e depois Malhoa pintou-a de branco; ela tinha muitas tatuagens, o que era muito pouco comum para a época, que o Rei D. Manuel sugeriu que fossem retiradas, ficando apenas uma muito pequena numa das mãos de Adelaide", conta Vasco Pereira Coutinho.
Entre a pressão da rua (foi um escândalo na imprensa que Malhoa tivesse convidado os habitantes de Mouraria a opinar sobre a obra no seu estúdio) e das elites, o pintor foi subindo a alça, a roupa, foi cobrindo a obra.
E agora, finalmente, cumpre-se o fado deste Fado: as irmãs separadas à nascença vão agora reunir-se na Sociedade Nacional de Belas Artes.