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Sociedade
17 novembro 2024 às 01h13
Leitura: 13 min

Internet. As ameaças à primeira geração 100% digital

Mais do que nunca, a tecnologia digital está ao alcance de crianças e adolescentes. A Organização Mundial de Saúde alerta para uso cada vez mais perigoso das redes sociais. Especialistas denunciam perigos, mas também lembram os benefícios.

Chama-se geração Alfa. Recentemente cunhada, a expressão refere-se ao grupo demográfico nascido depois de 2010, o ano do lançamento do primeiro iPad e da criação da rede Instagram. A primeira geração 100% digital vive num mundo interconectado e constantemente informativo devido à massificação e normalização do uso diário de dispositivos móveis. 

Esta maneira única de crescer, diferente da de qualquer outra geração, num mundo digital de acesso muito facilitado, reflete-se no tipo de utilização que as crianças e jovens fazem da internet, das redes sociais e também dos videojogos. Jogar ou ver vídeos por lazer, comunicar com familiares e amigos, partilhar fotografias, vídeos, opiniões ou outros conteúdos nas redes sociais e, inclusivamente, aprender através de conteúdos pedagógicos são aspetos positivos da utilização dos ecrãs, ferramenta imprescindível e preciosa.
“É possível dizer que o uso dos ecrãs pode ser considerado saudável quando tem um propósito, decorre durante uma quantidade de tempo razoável e tem benefícios cognitivos, comportamentais e promove o bem-estar”, diz um relatório elaborado pelo Departamento de Ciência e Prática Psicológica da Ordem dos Psicólogos Portugueses com a colaboração da psicóloga Ivone Patrão. “No polo oposto do espectro”, contrapõe de imediato, “o uso pode ser problemático quando implica o dispêndio de uma grande quantidade de tempo, bem como efeitos físicos e psicológicos adversos”.

Recentemente, a Organização Mundial de Saúde alertou para o crescimento da utilização problemática das redes sociais entre os jovens europeus, deixando-os também mais propensos a desenvolver o vício do jogo. Em 2022, 11% dos adolescentes (13% das raparigas e 9% dos rapazes) mostraram sinais de utilização problemática das redes sociais, em comparação com apenas 7% quatro anos antes, de acordo com dados obtidos junto de 280 mil jovens com 11, 13 e 15 anos de 44 países da Europa, Ásia Central e Canadá. 

Ivone Patrão, psicóloga.
Fotografia: Leonardo Negrão
(Leonardo Negrão)
Leonardo Negrão | Leonardo Negrão

Palavra de ordem: moderação

O perigo está no uso excessivo do ecrã. Em Portugal, de acordo com dados da Ordem dos Psicólogos, 64,5% das crianças e adolescentes utilizam o smartphone como atividade de tempos livres. Mais do que ouvir música (51,8%), estar com amigos (31,9%), praticar um desporto (19,8%), ler um livro (9,7%) ou ver televisão (8,9%). 

Noventa por cento das crianças e adolescentes, entre os 9 e os 17 anos, utilizam o smartphone todos os dias - mais do dobro das que usam o computador (42%). Um em cada quatro jovens utiliza as redes sociais mais de seis horas por dia. Os jovens com menos de 24 anos são os que mais utilizam as redes sociais para fugir a emoções desagradáveis - 56,1% dos jovens (18 anos) utiliza as redes sociais entre duas e cinco horas por dia.

As crianças que passam mais de três horas por dia a usar ecrãs parecem ter piores resultados em medidas de avaliação cognitiva e sentir maiores dificuldades em regular a impulsividade. Um aumento das horas passadas em frente a ecrãs, por dia, parece associado, de forma moderada a forte, a uma redução da atividade física, a uma dieta menos saudável e a um aumento do peso corporal - fatores de riscos para diversos problemas de saúde. As crianças que despendem várias horas por dia em ecrãs e sem a participação parental, parecem ter piores resultados em disciplinas de cálculo, leitura e escrita. 

A Unicef tem reforçado o alerta lançado em 2017: no uso de redes sociais sem supervisão de adultos, destaca-se o risco de exposição infantil a conteúdos inapropriados, violentos, autolesivos ou suicidas, de incitação ao ódio, pornográficos, entre outros. 

Um tempo de uso de ecrã superior a três horas diárias parece aumentar a gravidade de sintomas depressivos - sobretudo em raparigas. Outros estudos indicam que a utilização excessiva se associa a uma pior qualidade do sono e a problemas do comportamento alimentar. 

“É importante abraçarmos a tecnologia sem esquecer o abraço humano. A tecnologia veio para ficar, mas não para substituir o amor e a relação”, diz ao DN Ivone Patrão. Para a psicoterapeuta, a supervisão parental é a chave mediadora da relação das crianças e jovens com a tecnologia. “Somos nós adultos que damos a tecnologia às crianças, então estamos todos a tempo de lhes oferecer um treino diário de regulação do comportamento digital, pelo modelo e pelo juízo crítico face a situações de risco - estas podem sempre acontecer, mas com suporte relacional são mais fáceis de lidar e evitar no futuro”. 

Os efeitos do uso de ecrãs e tecnologias digitais no desenvolvimento das crianças em idade escolar encontram-se em investigação e debate. A literatura científica indica que um uso moderado - uma a duas horas por dia -, parece associar-se a benefícios cognitivos e psicossociais. “Os benefícios parecem existir sobretudo quando as tecnologias digitais são utilizadas com propósitos pedagógicos e quando, na utilização recreativa, existe envolvimento parental”, dizem os especialistas. Em crianças em idade escolar, o uso moderado de ecrãs, quando utilizados de forma recreativa e adaptada à idade, está associado a “um menor risco de experienciar sintomas depressivos, comparativamente a crianças que nunca usam ecrãs”. 

E mesmo os videojogos - vilão maior - têm vantagens: proporcionando relações mais diversas e inclusivas relativamente ao género do que as relações offline, promovendo capacidades de orientação espacial e raciocínio lógico, desenvolvendo atitudes e comportamentos de cooperação e entreajuda, contribuindo para a aquisição de vocabulário e aprendizagem de uma segunda língua. Há, porém, uma palavra de ordem, que se aplica, de resto, a todos os escalões etários - moderação. 

O início da adolescência (entre os 11 e os 13 anos para as raparigas, e os 13 e os 15 para os rapazes) parece ser o período mais vulnerável à influência das tecnologias digitais, sobretudo das redes sociais. Também neste escalão, o uso moderado dos ecrãs parece associar-se a benefícios para o funcionamento psicossocial. De facto, se o uso excessivo pode provocar efeitos negativos, a restrição completa pode associar-se a sentimentos de exclusão social.

Investigações indicam que as tecnologias digitais - nomeadamente as redes sociais e os videojogos colaborativos - podem facilitar a comunicação e a proximidade entre adolescentes, ajudar à resolução de problemas, estimular a criatividade. Cerca de 10-15% dos/as adolescentes experienciam, em determinados momentos, efeitos nefastos do uso das redes sociais; entre 10-15% experienciam efeitos benéficos. “Provavelmente, para a maioria dos/as jovens, e na maior parte do tempo, as redes sociais não têm um impacto significativo, nem benéfico nem nefasto, no seu bem-estar psicológico”, diz o estudo da Ordem. 

O médico João Nuno de Faria.
Fotografia: Paulo Spranger

Supervisionar: a importância do bom-senso

Supervisionar significa orientar e monitorizar com atenção o que fazem nos dispositivos e espaços digitais garantindo segurança e bem-estar enquanto exploram e aprendem a utilizar as tecnologias de forma útil e segura. Supervisionar não significa controlar de forma autoritária, a supervisão respeita a privacidade e acontece através do diálogo e da tomada de decisões em conjunto. 

Ligar ou instalar um filtro de controlo parental; proteger a identidade online; ajudar a definir passwords para cada dispositivo/plataforma; configurar definições de privacidade; verificar antes de usar sites e apps ou conhecer as plataformas que utiliza podem ser boas práticas. Monitorizar com regularidade também, questionando: “Então o que tens visto nas redes sociais?”; “Houve algo que te surpreendeu?”; “Aconteceu algo estranho?”; “Quais são os teus companheiros de jogo?”; “Posso ver o que tens andado a fazer online? Vemos os dois em conjunto, está bem?”; “O que achas de vermos o que tem aparecido nas tuas redes sociais?”; “Queres mostrar-me com quem tens falado? Não precisas de mostrar o que falaram, basta explicares-me quem são e como os conheceste”. 

Quase metade das crianças e adolescentes passa mais de duas horas por dia a comunicar ou a ver e partilhar conteúdos no TikTok (43,1%), WhatsApp (38,8%) ou Instagram (37,1%). 36,4% das crianças e adolescentes (11-17 anos) e 45% dos jovens (18 anos) passa mais de duas horas, por dia, a jogar videojogos. É por isso importante conhecer os limites de idade legal de utilização - 13 anos para Facebook, WhatsApp, Instagram, TikTok, Discord e Reddit; 16 anos para LinkedIn e Telegram (partilham informação privada, nomeadamente, o número e/ou email de contacto pessoal); 18 anos para Tinder, Bumble, Onlyfans (plataformas de encontros/ com conteúdos de teor sexual), Youtube (embora se preveja a utilização aos 13 anos, quando há consentimento parental). 

Por último, a regra número da prevenção, a aplicar aos adultos: estar disponível para escutar. 

A Organização Mundial de Saúde (2019), a Academia Americana de Pediatria (2022) e a Associação de Psicologia Americana (2019) apresentam recomendações quanto ao tempo de uso de ecrãs por crianças. Até aos 12 meses é recomendado que não exista interação com qualquer tipo de ecrã e conteúdo digital. A única exceção é a videochamada com pessoas significativas para a criança, por exemplo, quando um pai/mãe ou avô/avó, se encontram longe da criança por um longo período. 

Entre os 12 e os 24 meses é recomendado uma interação bastante limitada com ecrãs, devendo cingir-se à comunicação por videochamada com pessoas importantes e que estão longe (por exemplo, pai, mãe, avós ou outros familiares) - considerando-se o benefício de estabelecerem e manterem estas relações. Deve encorajar-se ao máximo a interação com pessoas, brinquedos, livros infantis ou outras atividades criativas longe dos ecrãs. A relação com estes deve limitar- se a conteúdos apropriados, por exemplo, músicas infantis. Pais ou cuidadores da criança devem estar presentes e mediar esta interação.

No escalão entre os 2 e os 5 anos não é recomendada mais que uma hora por dia a interagir com ecrãs. Desenhos animados, videojogos num tablet, smartphone ou consola devem ser apropriados à idade da criança e acontecer na presença de um adulto. É recomendado que o tempo de ecrãs seja planeado - não deve servir simplesmente para distrair ou acalmar a criança. Muitas das personagens que as crianças gostam de ver nos ecrãs também existem em livros, brinquedos ou puzzles, sendo preferível utilizar estes formatos.

Entre os 6 e os 10 anos é recomendado um máximo de duas horas por dia, com limites consistentes no tipo de conteúdos que vêem e no tempo que passam a interagir com ecrãs. E que deve ser posterior ao tempo das tarefas da escola, num equilíbrio entre o desenvolvimento de competências digitais e atividades criativas e desportivas. Os adultos continuam a ter um papel importante, ajudando a criança a compreender o que vê. 

A partir dos 11 anos mantém-se uma recomendação entre duas a três horas por dia. É importante que os jovens possam desfrutar dos benefícios das atividades com ecrãs e sem ecrãs ganhando, progressivamente, maior autonomia no uso das tecnologias digitais, noção de tempo excessivo, riscos e perigos que podem encontrar no mundo digital e estratégias para os enfrentar com sucesso.